domingo, 8, junho , 2025 07:11

O resgate de Pupy: o périplo da última elefanta de Buenos Aires até o Brasil

A travessia por terra, realizada em abril de 2025, durou quatro dias e foi acompanhada em tempo real por redes sociais. A viagem, feita em um caminhão especialmente adaptado, levou Pupy do Ecoparque de Buenos Aires — antigo Jardim Zoológico da capital argentina, localizado no bairro de Palermo — até o Santuário de Elefantes Brasil (SEB), na cidade de Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso.

“#PartiuBrasil, PUPY ESTÁ VINDO!”, anunciava a capa de um vídeo publicado no Instagram do SEB. Nele, Scott Blais, especialista em elefantes e diretor do santuário, responsável pela operação batizada de “Resgate Pupy”, contava que a elefanta africana, com cerca de 36 anos, havia subido voluntariamente no contêiner preparado para a transferência e, agora, seguia viagem “comendo muito bem; basicamente comendo sem parar”.

“Chega disso”, diz Blais no vídeo de 14 de abril, referindo-se ao pátio redondo de 2.800 m², com um templo de estilo indiano e estruturas internas de estábulo, onde Pupy viveu por mais de três décadas, sob o olhar dos moradores dos edifícios que cercam o recinto. “Estamos indo para os pastos verdejantes do Brasil.”

Uma primeira tentativa de transporte, feita no final de fevereiro, foi abortada quando Pupy se agitou ao ter o contêiner fechado. “Ela ainda não estava pronta, e mostrou isso”, explicou Blais ao jornal argentino La Nación. Mas, na segunda tentativa, em abril, ela manteve a calma ao entrar e durante todo o percurso de 2.700 quilômetros, conforme relataram atualizações diárias feitas por Blais nas redes sociais. “Não é comum que elefantes se mantenham tão calmos, especialmente quando passaram tanto tempo em zoológicos”, disse o especialista durante uma parada noturna na estrada. Ele atribui a tranquilidade ao vínculo com os cuidadores que a acompanharam, e aos meses de preparação prévia, nos quais Pupy foi treinada para se familiarizar com o contêiner como um espaço seguro.

A decisão de transferi-la foi tomada em 2017, quando a cidade de Buenos Aires decidiu transformar o antigo zoológico, fundado em 1888, em um “ecoparque educativo, com experiências tecnológicas e sem a presença permanente de animais”. A primeira etapa do plano previa a transferência do maior número possível de espécies. “O cativeiro é uma condição degradante para os animais. Não é a maneira correta de cuidar deles”, afirmou o então chefe do governo da cidade, Horacio Rodríguez Larreta, em 2016. A medida marcou uma guinada na tradição de um país que se orgulhava de ter inaugurado o primeiro zoológico da América Latina.

Maior número de mascotes per capita do mundo

Uma cena cotidiana nas manhãs da capital argentina é a dos paseadores de perros — profissionais que conduzem grupos de cães pelas calçadas. Com frequência, entre cinco e quinze animais caminham ordenadamente ao lado de seus guias, sem puxar a coleira, brigar ou tentar atravessar a rua fora de hora. Fazem suas necessidades em parques — ou às vezes nas calçadas — e retornam a seus lares sem maiores incidentes.

O serviço é necessário em um país que possui o maior número de mascotes per capita do mundo: oito em cada dez lares têm ao menos um animal de estimação. Os cães — chamados carinhosamente de ropes, por inversão das sílabas de perros — são os mais comuns, mas há também gatos (michis), coelhos, furões e outras espécies.

O amor dos argentinos pelos animais é antigo: desde 1908, celebra-se no dia 29 de abril o “Día del Animal”. Em 2015, a Justiça do país reconheceu, com repercussão internacional, os direitos de uma orangotango chamada Sandra, declarando-a “pessoa não humana” em uma decisão que concedeu a ela habeas corpus — um instrumento jurídico destinado a libertar indivíduos ilegalmente privados de liberdade. Sandra também passou mais de duas décadas no zoológico de Buenos Aires.

A Argentina tem uma longa tradição legal de proteção animal. Já em 1879 foi criada a Sociedade de Proteção Animal, e em 1891 entrou em vigor a Lei Nacional de Proteção aos Animais.

A evolução da ideia de cativeiro

A noção de conservação e cuidado de espécies evoluiu ao longo do tempo. Por décadas, manter animais selvagens em zoológicos era sinal de progresso urbano e fonte de entretenimento.

Carlos Pellegrini, presidente argentino no fim do século XIX e um dos entusiastas da criação do zoológico de Buenos Aires, escreveu em 1883 que a capital “carece daquelas decorações que a tornam uma verdadeira cidade”, e que “o olhar selvagem de um leão, as proporções de um elefante ou a feiura de um hipopótamo despertam mais curiosidade que plantas”.

A relação entre humanos e animais foi moldada por fatores diversos: curiosidade científica, instinto protetor, desejo de lucro, fascínio, condescendência, ativismo e entretenimento. Ao longo de 120 anos, os zoológicos argentinos refletiram essa complexidade.

O urso polar sob o sol de Palermo

Durante décadas, o zoológico de Buenos Aires manteve ursos polares, apesar dos extremos climáticos da cidade. A morte do urso Winner, em 2012, durante uma onda de calor no verão, gerou comoção. Antes disso, sua imagem na piscina externa, tentando se refrescar, era encarada como uma atração comum.

A versão oficial para a morte do animal falava em “combinação de fatores”, como seu temperamento nervoso, o calor intenso e os fogos de artifício do Natal. No dia seguinte, uma pichação no muro do zoológico contestava a narrativa: “O Winner morreu por impunidade.”

A jornalista Natalia López Torrecilla lembra de visitar o zoológico quando criança. Morava em frente ao local e via o elefante da varanda. “Não se precisa de um zoológico para saber que elefantes existem. Isso é coisa de outra época”, diz hoje. Seus filhos, de seis e nove anos, perguntam por que os animais precisam ser trancafiados. Natalia viveu parte da infância na Antártida e atualmente dá palestras sobre a vida no continente gelado.

“Os zoológicos sempre me entristeceram”, diz Sol Sazatornil, empresária de Córdoba, cidade que também abriga um zoológico desde 1915, hoje rebatizado como “Parque da Diversidade”. Ex-agente de turismo, Sol relutava em vender pacotes para santuários de elefantes na Tailândia. Para ela, é urgente repensar a relação entre humanos e animais, priorizando o bem-estar das espécies, com respaldo científico.

O dano nem sempre pode ser reparado

“Não se trata de culpar o passado”, diz Sol, referindo-se às consequências históricas da domesticação. Muitos animais não podem mais voltar à natureza, mesmo quando os zoológicos se transformam. Pupy, por exemplo, passou de um espaço de 2.800 m² para um santuário de 12 quilômetros quadrados. Mas nem todos têm essa chance.

Duas girafas ainda vivem no Ecoparque, alimentando-se em cestos suspensos, cercadas por avenidas movimentadas. Placas explicativas admitem: “Esses animais foram criados em cativeiro para fins expositivos. Por isso, não podem retornar à natureza. Trabalhamos para garantir seu bem-estar.”

Apesar da promessa de transferência, esses animais provavelmente passarão o resto da vida no local. Há, no entanto, iniciativas em andamento, como o santuário multiespécies de Entre Ríos, que se apresenta como o primeiro da Argentina.

Não é fácil deixá-los ir

Em “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, a raposa diz que “cativar” significa criar laços. É o que acontece em sociedades que se apegam a seus animais — e com os próprios animais, que, mesmo limitados ao confinamento, encontram conforto junto aos humanos que os cuidam.

Pupy só conseguiu completar sua jornada porque foi acompanhada por cuidadores que a incentivaram durante todo o percurso. Sua transferência não foi apenas uma mudança de local: foi uma operação de resgate, conduzida por uma nova geração de especialistas com outra visão sobre o papel dos humanos na vida de animais selvagens.

Ao chegar ao santuário, Pupy levou nove horas para sair da caixa. Comeu muitas melancias — sua fruta preferida — e recebeu banhos refrescantes. Seus fãs, atentos às redes sociais, aguardavam o momento em que ela daria, por vontade própria, o passo em direção à liberdade.

“Obviamente temos um vínculo especial. Tenho fotos minhas de criança no zoológico, perto da Pupy. A amamos profundamente”, disse María José Catanzariti, cuidadora da elefanta, em entrevista ao canal da Fundação Ambiente y Medio. “Mas, por amá-la e querer seu bem-estar, sabemos que essa mudança é o melhor que poderia acontecer. É uma perda emocional para nós, por não podermos mais vê-la todos os dias.”

Elefanta renovada: o antes e depois de Pupy

Duas semanas ao ar livre, derrubando árvores pequenas, banhando-se em lama e caminhando por matas naturais foram suficientes para transformar sua aparência. “Você acredita que é a mesma elefanta?”, diz um vídeo de 3 de maio, comparando a Pupy cinzenta, de orelhas caídas, no Ecoparque, com a elefanta vibrante e marrom, batendo as orelhas no verde do santuário.

É reconfortante saber que ainda há uma maneira de ter Pupy em nossas vidas — mesmo que seja de longe, sem tocá-la, apenas torcendo por sua liberdade.

noticia por : Gazeta do Povo

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