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domingo, fevereiro 9, 2025

“Um dia é como todos os outros”: a filosofia antiga que transforma a vida cotidiana

“Diário Estoico” (editora Intrínseca), de Ryan Holiday e Stephen Hanselman, é um guia pop e acessível sobre o estoicismo — uma filosofia da Antiguidade que, em linhas gerais, ensina a arte de viver com serenidade e sabedoria, independentemente das circunstâncias.

A obra propõe uma reflexão diária baseada em passagens de pensadores como Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio, explicando como suas reflexões podem ser aplicadas ao nosso cotidiano para desenvolver força, autocontrole e clareza mental.

No recorte a seguir, os autores (ambos dedicados à divulgação da filosofia antiga por meio de podcasts, palestras e livros) contextualizam o estoicismo e seus princípios fundamentais, resumindo sua essência e convidando o leitor a embarcar numa jornada de um ano por esses ensinamentos.

Os diários íntimos de um dos maiores imperadores de Roma, a correspondência pessoal de um dos melhores dramaturgos e mais sábios formadores de opinião de Roma, as palestras de um ex-escravizado e exilado, transformado em influente professor. Contra todas as probabilidades e a passagem de cerca de dois milênios, esses documentos incríveis sobrevivem.

O que eles dizem? Poderiam essas páginas antigas e obscuras realmente conter alguma coisa relevante para a vida moderna? A resposta, segundo se revela, é sim. Elas contêm parte da maior sabedoria na história mundial.

Juntos esses documentos constituem o alicerce daquilo conhecido como estoicismo, uma filosofia antiga, outrora uma das disciplinas cívicas mais populares no Ocidente, igualmente praticada pelos ricos e pelos empobrecidos, pelos poderosos e por aqueles que batalhavam na busca por uma boa vida. Ao longo dos séculos, porém, essa maneira de pensar, essencial para tantos no passado, lentamente desapareceu de vista.

Exceto para aqueles que buscam sabedoria com mais avidez, o estoicismo é ou desconhecido, ou mal compreendido. De fato, seria difícil encontrar uma palavra tratada com maior injustiça nas mãos da língua inglesa do que “estoico”.

Para as pessoas em geral, essa maneira de viver vibrante, orientada para a ação e transformadora de paradigmas tornou-se taquigrafia para “sem emoção”. Dado que a mera menção à filosofia a deixa a maioria nervosa ou entediada, “filosofia estoica” soa aparentemente como a última coisa que alguém gostaria de aprender, muito menos de que precisaria urgentemente na vida cotidiana

Que triste destino para uma filosofia que até um de seus críticos ocasionais, Arthur Schopenhauer, descreveu como “o ponto mais alto que o homem pode alcançar pelo mero uso de sua faculdade da razão”.

Ferramenta de autocontrole

O estoicismo deveria ser devolvido a seu lugar de ferramenta na busca do autocontrole, da perseverança e da sabedoria: algo que usamos para levar uma vida excelente, não um campo esotérico de pesquisa acadêmica

Certamente muitas das grandes mentes da história não só compreenderam o estoicismo pelo que ele realmente é, elas também o procuraram: George Washington, Walt Whitman, Frederico, o Grande, Eugène Delacroix, Adam Smith, Immanuel Kant, Thomas Jefferson, Matthew Arnold, Ambrose Bierce, Theodore Roosevelt, William Alexander Percy, Ralph Waldo Emerson. Cada um deles leu, estudou, citou ou admirou os estoicos.

Os antigos estoicos nada tinham de indolentes. Nomes fundamentais como Marco Aurélio, Epicteto, Sêneca pertenciam, respectivamente, a um imperador romano, a um ex-escravizado que trinfou para se tornar um i fluente conferencista e amigo do imperador Adriano e a um famoso dramaturgo e conselheiro político.

Houve estoicos como Catão, o Jovem, que era um político admirado; Zenão era um próspero comerciante (como muitos estoicos); Cleantes era um ex-boxeador que trabalhou como carregador de água para poder pagar os estudos; Crísipo, cujos escritos estão hoje completamente perdidos, mas contavam mais de 700 livros, treinava como um corredor de longa distância; Posidônio serviu como embaixador; Musônio Rufo era professor; e muitos outros.

Hoje, o estoicismo encontrou um público novo e diversificado, que varia das equipes técnicas do New England Patriots e do Seattle Seahawks ao rapper LL Cool J e à jornalista americana Michele Tafoya, bem como muitos atletas profissionais, CEOs, administradores de fundos multimercados, artistas, executivos e homens e mulheres públicos.

O que todos esses grandes homens e mulheres encontraram no estoicismo que outros deixaram escapar? Muita coisa.

Filosofia prática

Enquanto os acadêmicos costumam ver o estoicismo como uma metodologia antiquada de interesse menor, foram as pessoas dinâmicas do mundo que descobriram que ele fornece muito da força e da energia necessárias para a vida desafiadora delas.

Quando o jornalista e veterano da Guerra Civil Americana Ambrose Bierce advertiu um jovem escritor que estudar os estoicos iria lhe ensinar “a ser um digno conviva à mesa dos deuses”, ou quando o pintor Eugène Delacroix (famoso por sua pintura “A Liberdade Guiando o Povo”) chamou o estoicismo de sua “religião consoladora”, eles falavam por experiência própria.

Assim como o valente abolicionista e coronel Thomas Wentworth Higginson, que chefiou o primeiro regimento composto apenas por negros na Guerra Civil Americana e é responsável por uma das mais memoráveis traduções de Epicteto.

O agricultor e escritor William Alexander Percy, que chefiou os esforços de resgate da Grande Inundação de 1927, tinha um único ponto de referência quando disse que “quando tudo está perdido, ele [o estoicismo] se mantém firme”.

Tal como o autor e investidor-anjo Tim Ferriss, quando se referiu a esta filosofia como o “sistema operacional pessoal” ideal (outros executivos muito influentes, como Jonathan Newhouse, o CEO da Condé Nast International, concordaram).

Mas é para o campo de batalha que o estoicismo parece ter sido particularmente bem concebido.

Em 1965, quando o capitão James Stockdale (futuramente agraciado com a Medalha de Honra) saltou de paraquedas de seu avião abatido sobre o Vietnã para o que viria a ser meia década de tortura e encarceramento, qual era o nome que estava em seus lábios? Epicteto.

Assim como Frederico, o Grande, que cavalgou para a batalha com as obras dos estoicos em seus alforjes, também fez o fuzileiro naval e comandante da Otan general James “Mad Dog” Mattis, que levou as Meditações de Marco Aurélio com ele em deslocamentos no golfo Pérsico, no Afeganistão e no Iraque.

Novamente, eles não eram professores, mas praticantes, e, enquanto filosofia prática, o estoicismo lhes parecia perfeitamente adequado para seus propósitos.

Origem na Grécia

O estoicismo foi uma escola de filosofia fundada em Atenas por Zenão de Cítio no início do século III a.C. Seu nome deriva do grego stoa, que significa “pórtico”, porque era ali que a princípio Zenão ensinava seus alunos.

A filosofia declara que virtude (significando, principalmente, as quatro virtudes cardeais do autocontrole, coragem, justiça e sabedoria) é felicidade, e são nossas percepções das coisas — em vez das coisas em si — que causam a maior parte de nossos problemas.

O estoicismo ensina que não podemos controlar ou contar com algo que esteja fora do que Epicteto chamou de nossa “escolha racional” — nossa capacidade de usar a razão para decidir como categorizamos acontecimentos externos, reagimos a eles e reorientamos a nós mesmos em relação a eles.

O estoicismo dos primeiros tempos era muito mais próximo de uma filosofia abrangente como outras escolas antigas cujos nomes talvez sejam vagamente familiares: epicurismo, cinismo, platonismo, ceticismo. Os proponentes falavam a respeito de diversos tópicos, como lógica, cosmologia e muitos outros.

Uma das analogias preferidas pelos estoicos para descrever sua filosofia era a de um campo fértil. A lógica era uma cerca protetora, a física era o campo e a colheita que tudo isso produzia era a ética — ou como viver.

À medida que avançou, no entanto, o estoicismo se concentrou principalmente em dois desses tópicos — a lógica e a ética.

Ao viajar da Grécia para Roma, tornou-se muito mais prático para se adequar à vida ativa e pragmática dos industriosos romanos.

Como Marco Aurélio observaria tempos depois: “Fui abençoado quando me interessei pela filosofi a por não ter caído na armadilha dos sofistas nem me afastado para a escrivaninha do escritor, ou passado a dissertar com pedantismo, ou a me ocupar do estudo do céu.”

Em vez disso, ele (assim como Epicteto e Sêneca) concentraram-se numa série de perguntas não muito diferentes daquelas que até hoje fazemos a nós mesmos: “Qual é a melhor maneira de viver?”, “Que devo fazer em relação à minha raiva?”, “Quais são minhas obrigações para com os meus semelhantes?”, “Tenho medo de morrer; por quê?”, “Como posso lidar com as situações difíceis que encontro?”, “Como devo lidar com o sucesso ou o poder que detenho?”.

Estas não são perguntas abstratas. Em seus escritos — na maior parte das vezes cartas pessoais ou diários — e em suas palestras, os estoicos esforçavam-se para propor respostas factíveis e reais. Eles acabaram por formular sua obra em torno de uma série de exercícios em três disciplinas críticas:

• A disciplina da Percepção (como vemos e percebemos o mundo à nossa volta)

• A disciplina da Ação (as decisões que tomamos e ações que empreendemos — e com qual finalidade).

• A disciplina da Vontade (como lidamos com as coisas que não podemos mudar, alcançamos julgamento claro e convincente e chegamos a uma verdadeira compreensão de nosso lugar no mundo).

Clareza, eficácia e perspectiva

Ao controlar nossas percepções, dizem-nos os estoicos, é possível encontrar clareza mental. Ao orientar nossas ações de maneira apropriada e justa, seremos eficazes. Ao utilizar e alinhar nossa vontade, encontraremos sabedoria e perspectiva para lidar com qualquer coisa que o mundo nos apresente.

Eles acreditavam que, fortalecendo a si mesmos e a seus concidadãos nessas disciplinas, poderiam cultivar resiliência, propósito e até alegria.

Nascido no tumultuoso mundo antigo, o estoicismo apontava para a natureza imprevisível da vida cotidiana e oferecia um conjunto de ferramentas práticas destinadas ao uso diário.

Nosso mundo moderno pode parecer radicalmente diferente do pórtico pintado (Stoa Poikilē) da Ágora ateniense e do Fórum e tribunal de Roma. Mas os estoicos fizeram um grande esforço para lembrar a si mesmos que eles não estavam enfrentando coisas muito diferentes das que seus antepassados tinham enfrentado, e que o futuro não alteraria radicalmente a natureza e o fim da existência humana.

Um dia é como todos os outros, como os estoicos gostavam de dizer. E isso ainda é verdade.

noticia por : Gazeta do Povo

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