Neste trabalho, Peterson nos convida a redescobrir a Bíblia não como um manual ético, mas como um chamado para começar um diálogo vivo com Deus.
No trecho a seguir, ele propõe uma postura de participação ativa no vasto e surpreendente mundo revelado nas Escrituras, em que somos desafiados a deixar de lado paradigmas e reajustar nossa imaginação.
Com paixão e convicção, [o teólogo suíço] Karl Barth insistia que a Bíblia é um livro diferente de todos os outros. Toda expectativa que temos em relação a ela revela-se inadequada ou equivocada.
O texto das Escrituras revela o Deus soberano em essência e em ação. Ele não nos elogia, não faz esforço para nos agradar. Entramos nesse texto para encontrar Deus à medida que ele se revela, e não para buscar uma verdade, uma história ou uma ética que possamos usar.
Mais que qualquer outra coisa, Barth defendia que a leitura bíblica não pode ter como finalidade a descoberta de uma maneira de colocar Deus em nossa vida e fazê-lo participante dela. Isso seria uma inversão na ordem das coisas.
Para cultivar uma mentalidade participativa em relação às nossas bíblias é necessário promover uma renovação completa da imaginação.
Estamos acostumados a pensar no mundo bíblico como menor do que o secular. Certas frases feitas denunciam nossa postura.
Falamos sobre “tornar a Bíblia relevante para o mundo”, como se o mundo fosse a realidade fundamental e a Bíblia algo que ajude ou conserte essa realidade. Falamos de “adequar a Bíblia à nossa vida” ou “abrir espaço em nosso dia para a leitura bíblica”, como se fosse mais uma atividade a ser acrescentada ou acumulada na já saturada rotina da vida.
Singularidade
Quando participamos do mundo de Deus, revelado enfaticamente nas Escrituras como um Deus pessoal, precisamos demonstrar disposição de aceitar não só a singularidade desse mundo — ele não corresponde aos nossos preconceitos ou às nossas predileções —, como também sua incrível amplitude.
Descobrimo-nos em um universo verdadeiramente em expansão que excede tudo o que aprendemos em nossos livros de geografia ou astronomia. Nossa imaginação precisa ser renovada para aceitar o imenso mundo da revelação de Deus, em contraste com o mundinho da imaginação humana.
Aprendemos a viver, imaginar, crer, amar e conversar nesse mundo imenso, complexo e cheio de vida ao qual temos acesso por intermédio do Antigo e do Novo Testamentos. “Bíblico” não significa o resultado da reunião de textos para provar ou reafirmar algum dogma ou prática com que deparamos.
Pelo contrário: o termo sinaliza uma abertura para o que “olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou […] mas Deus o revelou a nós por meio do Espírito” (1Co 2.9-10).
O que nunca devemos ser encorajados a fazer (embora todos incorramos nesse erro com frequência) é forçar as Escrituras a se ajustarem à nossa experiência. Nossa experiência é restrita demais; seria como tentar fazer o oceano caber dentro de um dedal.
O que desejamos é nos ajustar ao mundo revelado pelas Escrituras, nadar nesse vasto oceano. Nosso objetivo é começar a perceber e, em seguida, nos envolver na maneira como o imenso mundo da Bíblia absorve o mundo muito menor da ciência, da economia e da política, que fornecem a chamada “cosmovisão” a partir da qual estamos acostumados a resolver nossos problemas cotidianos.
Isso significa que devemos abandonar todo tipo de condescendência no que se refere à abordagem da Bíblia. A maioria de nós foi treinada no que, vez por outra, é chamado de “hermenêutica da suspeita”.
As pessoas mentem muito. E quem escreve mente mais do que a maioria. Somos ensinados a manter uma suspeita saudável em relação a tudo o que lemos, especialmente quando reivindica autoridade sobre nós.
Isso é certo. Examinamos o texto várias vezes. O que está acontecendo aqui? O que está oculto? O que há por trás disso tudo?
“Segunda ingenuidade”
Os três mestres modernos da hermenêutica são Nietzsche, Marx e Freud. Eles nos ensinaram perfeitamente a não aceitar nada pelo seu sentido literal.
Grande parte disso é útil. Não queremos ser enganados, manipulados por fabricantes de palavras ou seduzidos por publicitários espertos e anunciantes para comprar coisas que não queremos e jamais iremos usar, ou envolvidos em algum programa de destruição de almas por um propagandista de fala macia.
Em questões ligadas a Deus, ficamos duplamente na defensiva, suspeitando de tudo e de todos, inclusive da Bíblia. Aprendemos, para nossa tristeza, que as pessoas da religião mentem mais do que a maioria — e mentiras proferidas em nome de Deus são as piores de todas.
No entanto, quando estreitamos os olhos em função dessa suspeita, o mundo também se reduz. Ao levarmos esses hábitos de leitura às Escrituras Sagradas, acabamos reduzindo-as a um punhado de fatos.
[O filósofo francês] Paul Ricoeur tem um ótimo conselho para pessoas como nós. Sugere que continuemos em frente, mantendo e praticando a hermenêutica da suspeita, um hábito não apenas importante, como também necessário.
Há uma porção de mentiras por aí; aprenda a discernir a verdade e jogar fora o que não presta. Em seguida, porém, volte a entrar no livro, no mundo, com o que ele chama de “segunda ingenuidade”.
Olhe para o mundo com admiração infantil, pronto para se deleitar alegremente na abundância de verdade, beleza e bondade derramada do céu a cada momento. Cultive uma hermenêutica de adoração — veja como a vida é vasta, esplêndida, magnífica.
A seguir, pratique essa hermenêutica de adoração ao ler a Escrituras Sagradas. Organize-se de modo a passar o resto de sua vida explorando e apreciando o mundo tão vasto quanto complexo que esse texto revela.
Obediência
Entramos no mundo do texto, o mundo em que Deus é o tema, a fim de nos tornar participantes dele. Temos um papel a desempenhar nesse texto, uma participação dada a nós pelo Espírito Santo.
Ao fazermos a nossa parte, nós nos tornamos participantes. Esse livro nos foi concedido para que, usando a imaginação e a fé, penetrássemos no mundo do texto e seguíssemos a Jesus.
No que se refere ao tratamento que dedicava às Escrituras Sagradas, João Calvino geralmente é citado da seguinte maneira: “Todo conhecimento correto de Deus nasce da obediência”.
Na comunidade cristã, é difícil encontrar um exegeta ou tradutor respeitado das Escrituras que não tenha dito a mesma coisa. Se não entramos nesse texto como participantes, não conseguimos entender o que está acontecendo.
Esse texto não pode ser compreendido se permanecemos apenas observando das arquibancadas, ou mesmo de camarotes caros. Estamos dentro dele.
noticia por : Gazeta do Povo