A maioria dos brasileiros que sabem que uma pessoa vive em Moscou, ou que visitou a cidade, pergunta antes de mais nada como anda a vida por lá, imaginando que, por causa da guerra, ela é sombria.
As ruas estão desertas? As lojas e os restaurantes estão fechados? Há falta de luz, água? As prateleiras dos supermercados estão vazias? Dá para comprar macarrão, carne? Como os russos de Moscou estão vivendo? Como eles se viram sem cartão de crédito?
As respostas: as ruas estão lotadas. As lojas e os restaurantes estão abertos e cheios.
A bandeira de cartão MIR, criada pelo Banco Central da Rússia em 2015, no contexto das sanções ocidentais contra o país por causa da anexação da Crimeia, um ano antes, substituiu as bandeiras estrangeiras. O sistema de pagamentos UnionPay, da China, cresceu. Estrangeiros podem trocar dólares por rublos, a moeda do país, em dezenas de bancos.
A coluna foi a Moscou em novembro para entrevistar Dimitri Peskov, o porta-voz de Vladimir Putin há duas décadas. E percorreu a metrópole.
A sensação de segurança, apesar da guerra, é semelhante à que se experimenta nas grandes capitais europeias. É possível caminhar sem receio inclusive depois que escurece. Os índices de criminalidade são baixos se comparados aos das cidades brasileiras.
Era inverno, e por volta das 16h30 já começava a anoitecer. Dois meses antes das festas de fim de ano, no entanto, a cidade estava intensamente iluminada.
O Natal não é comemorado no dia 25 de dezembro em Moscou por causa da herança comunista, que aboliu festas e feriados religiosos (quando foram reestabelecidos, o nascimento de Jesus passou a ser celebrado no dia 7 de janeiro, seguindo o calendário juliano adotado pela Igreja Ortodoxa, predominante no país).
As tradições natalinas, sob os bolcheviques, porém, foram incorporadas ao Ano Novo. As famílias se reúnem e trocam presentes. Árvores com bolas douradas e outros enfeites são instaladas por toda a cidade, bem como luminosos com os números “2025”, anunciando o novo período que se aproxima.
Naquele domingo, 24 de novembro, o Selfie, um restaurante de cozinha autoral que recebeu uma estrela do guia Michelin em 2022, funcionava normalmente, e estava cheio. Ceviche fresco, ravioli de caranguejo, linguado com pêssegos fritos, manteiga de tangerina são algumas das comidas disponíveis em seu cardápio.
Ele fica em um centro comercial, no mesmo piso de lojas de eletroeletrônicos, casas de vinho e supermercados com prateleiras abastecidas em que se pode encontrar de Coca-Cola a vinhos franceses, passando por batatas Pringles. Um piso abaixo fica uma churrascaria que também estava lotada neste dia, com mesas ruidosas, algumas delas celebrando aniversários.
Mil dias depois do início da guerra contra a Ucrânia, que o governo Putin chama de “operação militar especial”, não há racionamento em Moscou. O crescimento da economia no país hoje gira em torno de 3%.
A cidade é tratada pelo governo como uma fortaleza inexpugnável, que não pode ser abalada de forma alguma pela guerra.
Essa blindagem já foi desafiada. Neste mês, um atentado com um patinete-bomba matou um general russo em uma avenida a 7 km do Kremlin. O ataque foi reivindicado pelo Serviço Secreto da Ucrânia (SBU). Em episódio anterior, em maio de 2023, um drone atingiu o Palácio do Senado, no Kremlin.
Depois disso, o GPS passou a sofrer interrupções no centro da cidade, o que traz um dos poucos inconvenientes da guerra para os moscovitas: ao chamar um carro por aplicativos como o Yandex Go, o passageiro provavelmente vai ter problemas para encontrá-lo no endereço indicado. Isso ocorre porque, com a instabilidade do sistema que permite a localização com precisão, o motorista acaba estacionando sempre um pouco antes ou um pouco depois do endereço correto. Seguir aplicativos de mapas também ficou mais complicado.
Apesar da quase normalidade, não necessariamente os moscovitas consideram a guerra natural e aceitável. Uma pesquisa feita pelo instituto independente Levada, classificado pelo governo Putin como “agente estrangeiro” por receber recursos de fora do país, mostrou em outubro que 52% dos russos acompanham muito de perto as notícias sobre a guerra. O apoio a ela, de 52% em março de 2022, ainda é alto, mas caiu para 45% neste ano.
Como os brasileiros que não são indiferentes à violência ou israelenses de Tel Aviv que se posicionam contra o conflito de Gaza, no entanto, os moscovitas tocam adiante o seu cotidiano.
Uma outra diferença: com 13 milhões de habitantes, Moscou sempre recebeu milhares de turistas. Depois da guerra, o perfil dos visitantes mudou. Houve queda drástica, de 96,1%, no fluxo de estrangeiros da União Europeia e dos EUA em relação a 2019, por causa da pandemia de Covid-19. Com o conflito na Ucrânia, a suspensão dos voos diretos das capitais europeias para Moscou, as sanções econômicas e a deterioração da relação entre os países aprofundaram o problema.
Mas em 2023 o turismo russo começou a se recuperar —em particular por causa do aumento no fluxo de visitantes da China, de países do Oriente Médio e da Ásia Central. Foram emitidos cerca de 340,7 mil vistos estrangeiros para a Rússia, ou 2,4 vezes mais do que em 2022. China e Turcomenistão lideraram os pedidos.
A mudança exigiu adaptações do comércio. “Nunca contamos muito com os turistas, porque eles vinham, mas compravam pouco. No geral nossa clientela são os russos e os que trabalham nas embaixadas, ou estrangeiros que têm negócios aqui. Mas agora surgiram turistas árabes em grande quantidade, e eles querem comprar pequenas xícaras de café”, diz Andrei Tikhamerov, dono de uma loja de produtos de cerâmica na Feira de Ismailovo, que tem também um mercado de pulgas.
As vendedoras da francesa Clarins no shopping Gum, na Praça Vermelha, também dizem que os árabes começaram a aparecer em maior quantidade, “e eles buscam os perfumes de que gostam”, e os estoques precisam ser abastecidos.
Depois das sanções econômicas decretadas pelos países ocidentais, marcas de alto luxo francesas como a Dior e a Tiffany’s mantiveram as lojas instaladas em Moscou, com seus letreiros e luzes acesas. Mas suspenderam as vendas. Nas portas, colaram cartazes com o aviso: estão “temporariamente fechadas por problemas técnicos”. Nele, informam o número de WhatsApp por meio do qual podem ser acessadas caso algum cliente se interesse por seus produtos.
Marcas italianas como Dolce & Gabbana e Giorgio Armani funcionavam normalmente —nesta, até com promoção de Black Friday, com descontos de 20% na primeira e 30% na segunda compra.
A vendedora Emilie Daskalipoulos percorreu os quatro andares da Dolce & Gabbana com a coluna, explicando que aquela é “a maior loja da marca fora da Itália”. Quando começou a guerra, diz ela, “houve limitação na importação dos modelos mais caros”. Mas a coleção principal sempre se manteve.
Com o tempo, “nossos diretores chegaram a um acordo, e não há mais problemas agora. Inclusive nesta temporada recebemos uma coleção muito grande da linha Fashion, considerada das mais caras da Dolce”. Um casaco de inverno custava R$ 30 mil, um vestido, de renda, R$ 20 mil. Na francesa Saint Laurent, na mesma quadra, um casaco de peles custava R$ 66 mil.
As vendas seguem, a vida segue.
O comerciante Andrei Tikhamerov afirma que “as pessoas já se acostumaram com o conflito”. Ele mesmo sentiu poucas mudanças em sua rotina. “Não notei grandes diferenças”, afirma. “Os carros, por exemplo, ficaram mais caros. Meu carro já não está muito bom, e compreendo que não consigo adquirir um novo. É preciso consertar o antigo, dirigir com o que se tem. Os carros chineses [que agora são vendidos em maior quantidade na Rússia] são caros. E eu tenho a impressão de que não são de muito boa qualidade. Estou monitorando em fóruns [de consumidores], e não me parecem grande coisa”, relata.
Apesar das poucas alterações em seu dia a dia, Tikhamerov lamenta o conflito com a Ucrânia. “Quando uma guerra começa, é difícil dizer quem tem razão. Todos são culpados, via de regra. Na minha visão, não só a Rússia e a Ucrânia são culpadas, mas também os países ao redor, que empurraram para esse conflito. Que, na verdade, o geraram”, diz ele. “E isso é muito triste, porque temos parentes e familiares lá [na Ucrânia]. Mesmo antes da operação militar especial, muitos pararam de falar com a gente, porque lá [na Ucrânia] havia propaganda de que nós somos os seus inimigos. Foi dado um certo estímulo para que eles passassem a pensar assim. Mas o que, afinal, nos difere? [Eu dizia] ‘Vocês vivem aí, nós vivemos aqui, qual é a diferença?’. Tenho um primo de lá que reage com ódio aos russos.”
O comerciante afirma que “isso começou antes da dissolução da União Soviética”, em 1991. Relembra que parentes o visitavam em Moscou e diziam: “Vocês tomam a nossa manteiga”.
“Eu respondia ‘vamos ao mercado, vejam, a manteiga que consumimos é finlandesa, ou é feita na Rússia. Nunca vi manteiga ucraniana aqui’. Mas eles já viam essa propaganda de que nós somos os culpados, de que tomamos as coisas deles, isso e aquilo. E essa propaganda continuou, continuou. Até, no fim das contas, chegarmos a essa tragédia.”
noticia por : UOL