sábado, 14, junho , 2025 11:26

Doping liberado: Enhanced Games, a olimpíada de “super-humanos” que quer lançar uma indústria multimilionária

Parece a trama de um filme de ficção científica distópico.

Em um extravagante hotel de Las Vegas, atletas de todo o mundo disputam uma olimpíada alternativa, em que o doping não é apenas tolerado, mas estimulado. Por trás do evento, um grupo de investidores milionários vende a ideia de “redefinir os limites do esporte e do corpo”, enquanto funda uma nova indústria de aprimoramento da saúde humana em larga escala. 

Esta é a “sinopse” dos Enhanced Games, ou Jogos Aprimorados, programados para acontecer entre 22 e 24 de maio de 2026, nos Estados Unidos. Anunciada oficialmente há duas semanas, a competição mal saiu do papel e já vem sendo condenada por médicos e federações esportivas internacionais — todos chocados com a ousadia da proposta e os riscos que a acompanham.

Para entender como o projeto chegou até aqui, é preciso voltar a 2022, quando o australiano Aron D’Souza, conhecido investidor de startups de tecnologia, começou a prestar a atenção no crescente mercado de esteroides nos EUA e na Inglaterra. Ele percebeu que o uso dessas substâncias para a melhora do desempenho era uma realidade nas academias, inclusive entre pessoas que não necessariamente participam de competições oficiais. 

Decidido a se aprofundar no assunto, D’Souza teve acesso a um estudo revelador conduzido durante eventos esportivos internacionais por pesquisadores das universidades de Harvard (EUA) e Tubinga (Alemanha). Utilizando uma técnica de resposta aleatória para garantir o anonimato dos entrevistados, os acadêmicos descobriram que cerca de 44% dos atletas de elite admitem o uso de doping, enquanto menos de 1% é pego de fato. 

“Corpo soberano” 

Para o investidor, não se trata de uma desonestidade desses esportistas, e sim de uma falha do sistema. A solução? Legalizar, mediante uma rigorosa supervisão médica, os PEDs (sigla em inglês para Performance-Enhancing Drugs, substâncias de aprimoramento de desempenho). 

Aaron D’Souza então rascunhou um manifesto, baseado no direito inalienável de um indivíduo adulto ser soberano com relação ao próprio organismo. “Meu corpo, minha escolha. Seu corpo, sua escolha”, é o lema que resume sua filosofia.

Em paralelo, o empreendedor estudou os meandros do Comitê Olímpico Internacional (COI) e se deparou com uma estrutura que classificou como “hipócrita, burocrata, corrupta e disfuncional”. Segundo ele, as Olímpiadas dão atenção desmedida a “esportes que não importam de verdade” e gastam dinheiro demais dos contribuintes na construção de “estádios caros, abandonados após duas semanas”. 

Na avaliação de D’Souza, o COI é um “clube de aristocratas europeus” eleito sem prestar contas aos governos e à comunidade esportiva — o que permitiu à entidade, durante mais de um século, explorar financeiramente os atletas, cuja remuneração é ridícula se comparada a dos principais dirigentes. 

Pronto. Estava construído o “argumento de vendas” para levar os Enhanced Games adiante. 

Excêntricos e bilionários 

O passo seguinte foi prospectar apoio financeiro para a empreitada. E Aaron D’Souza conseguiu bem mais do que isso. 

Seus três primeiros parceiros, além de grandes investidores globais, contribuem para o projeto fornecendo um outro tipo de reforço: o ideológico.

Todos eles são bilionários influentes na política e de postura libertária, que fazem questão de divulgar seus pensamentos (muitos deles considerados excêntricos) sobre o capitalismo, o papel da tecnologia e o progresso da humanidade. 

Peter Thiel, por exemplo, é um defensor ferrenho do seasteading (criação de comunidades flutuantes em águas internacionais) e de investimentos em biotecnologia para o prolongamento da vida. Famoso por fundar, com Elon Musk, o serviço digital de pagamentos PayPal, Thiel é considerado o mentor intelectual de ninguém menos que o vice-presidente americano (e possível sucessor de Donald Trump) J.D. Vance.

Capitalista de risco e investidor de criptomoedas, Balaji Srinivasan tem como bandeira o avanço tecnológico sem amarras e o rompimento com o que chama de “governos geográficos”. Ele é autor do polêmico livro The Network State: How To Start a New Country (“O Estado da Rede: Como Começar um Novo País”), no qual defende a nacionalidade online e o surgimento de comunidades digitais capazes de financiar coletivamente a construção de cidades e estados autônomos. 

Christian Angermayer, empresário com foco em biotecnologia e tratamentos com psicodélicos, completa o núcleo central dos Enhanced Games. Cofundador e presidente da farmacêutica Atai Life Sciences, ele é descrito no site da companhia como “um empreendedor e investidor em série que constrói empresas que estão moldando a próxima agenda humana: um futuro no qual a tecnologia capacita as pessoas a terem vidas mais longas, saudáveis ​​e felizes”. 

Família Trump na jogada 

Mais recentemente, os jogos receberam uma injeção de recursos provenientes do príncipe saudita Khaled bin Alwaleed Al Saud (investidor em negócios que incluem uma fabricante de guindastes, um site de notícias de tecnologia e a primeira rede de restaurantes veganos do Oriente Médio) e do fundo 1789 Capital.

Este último, fundado em 2022, nos EUA, por herdeiros de grandes fortunas e banqueiros de investimentos, conta com uma peculiaridade: concentra-se apenas em produtos e empresas associadas a valores conservadores, anti-woke e anti-ESG (sigla em inglês para Environmental, Social and Corporate Governance, uma espécie de selo de melhores práticas ambientais, sociais e de governança).

Há dois anos, o Capital 1789 (o nome faz referência ao ano da assinatura da Declaração de Direitos dos Estados Unidos) anunciou a chegada de um novo sócio de peso, Donald Trump Jr. Em uma nota oficial, para anunciar o investimento do fundo nos jogos, Trump Jr. ligou o evento ao movimento MAGA (Make America Great Again). 

“Os Enhanced Games representam o futuro: competição real, liberdade real e recordes reais sendo quebrados. Isso diz respeito à excelência, à inovação e ao domínio americano no cenário mundial — algo que o MAGA representa”, afirmou o filho mais velho do presidente americano. 

Na ocasião, Aron D’Souza disse que ter o apoio político e cultural de figuras proeminentes do conservadorismo dos EUA “é mais importante do que qualquer investimento”. Já a imprensa do país destacou a tensão entre a nova administração Trump e a World Anti-Doping Agency (WADA, a Agência Mundial Antidoping), organização independente criada pelo Comitê Olímpico Internacional. 

Financiada pelo COI e por governos de diferentes países, a WADA teve US$ 3,6 milhões (cerca de R$ 20,1 milhões) de seu orçamento retidos neste ano. Os recursos viriam dos Estados Unidos, porém foram congelados por decisão do Escritório de Política de Controle de Drogas americano. 

A justificativa do órgão se baseou nas revelações sobre 23 nadadores chineses que tiveram resultado positivo para uma substância ilegal antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio de 2021 — mas não foram suspensos ou sancionados pela agência. 

“Cidade do Pecado” 

A escolha de Las Vegas para sediar a edição inaugural dos Enhanced Games, em maio de 2026, não foi por acaso. Conhecida por oferecer entretenimento controverso, e de grande apelo comercial, a chamada “Cidade do Pecado” é mesmo o palco ideal para receber a primeira olímpiada de “super-humanos” concebida por Aron D’Souza. 

Um complexo esportivo será construído no hotel Resorts World Las Vegas (que também funciona, é claro, como um cassino). Com um detalhe, sempre repetido pelos organizadores: o evento não receberá um centavo de verbas públicas.   

O programa, de início, contará com apenas três modalidades — natação (estilos livre e borboleta, ambos em 50 e 100 metros), atletismo (100 metros rasos e 100/110 metros com barreiras) e levantamento de peso (arranco e arremesso). Lutas como boxe e MMA podem ser incluídas nos próximos anos. 

Os prêmios, como prometido, são bastante atraentes. Se alguém, por exemplo, quebrar os recordes dos 50 metros livre na piscina e dos 100 metros rasos na pista, receberá um bônus de US$ 1 milhão (quatro vezes o valor médio oferecido pelas entidades esportivas tradicionais). 

A natação é considerada por D’Souza a “joia da coroa” dos jogos. “É a forma mais pura de velocidade no esporte”, diz o empreendedor, que nas entrevistas não esconde o desejo de ver superado, no evento de 2026, o recorde mundial dos 50 metros livre, de 20,91 segundos, estabelecido pelo brasileiro César Cielo em 2009.

Não à toa, a organização produziu e disponibilizou no YouTube um documentário de uma hora de duração intitulado “O Primeiro Super-Humano” e dedicado inteiramente à modalidade, a primeira dos Enhanced Games a anunciar competidores. 

Testosterona e peptídeos 

Quatro nomes foram confirmados até o momento. O mais famoso é o australiano James Magnussen. Ex-campeão mundial e dono de três medalhas olímpicas (uma prata e dois bronzes), ele concordou em sair da aposentadoria para buscar o bônus pelo recorde dos 50 metros livre. 

Magnussen tem tomado substâncias proibidas pela WADA, como testosterona e peptídeos, e afirmou que, se for necessário, usará “suco [gíria semelhante a ‘bomba’] até as guelras”.

“As pessoas vão olhar para trás e dizer: ‘Lembram como éramos contra os Jogos Aprimorados? Parecia perigoso, mas agora sabemos que é uma grande oportunidade para os atletas estenderem suas carreiras e ganharem mais”, disse ao jornal The New York Times

Outra figura central na promoção do evento é o grego Kristian Gkolomeev. Participante de quatro Olimpíadas (porém sem medalhas no currículo), ele virou notícia ao superar, extraoficialmente, o feito de Cesar Cielo no último mês de fevereiro, em um evento fechado no estado americano da Carolina do Norte. 

Gkolomeev, no entanto, bateu o recorde no “modo turbinado”: duas semanas depois de iniciar um tratamento com PEDs e usando um traje atualmente proibido em competições oficiais. 

Mas ele não pareceu se importar com o fato de que seu tempo não será reconhecido por organizações associadas ao COI. “Sempre quis ser o homem mais rápido na água. E agora que realmente consegui, parece surreal”, disse, durante uma coletiva em Las Vegas. 

Completam o quarteto Josif Miladinov (representante da Bulgária em Tóquio e Paris) e Andrii Govorov. Este último, que nadou em Londres e no Rio, afirma ter aceitado o convite para os Jogos Aprimorados devido às péssimas condições de treinamento em seu país, a Ucrânia, após a invasão russa de 2022. 

“Não posso escolher minha preparação. E você não consegue quebrar nenhum recorde quando é apenas um sobrevivente”, afirmou.

Para Aron DSouza, criador dos Enhanced Games, o Comitê Olímpico Internacional mantém uma estrtutura “hipócrita, burocrata, corrupta e disfuncional”Para Aron DSouza, criador dos Enhanced Games, o Comitê Olímpico Internacional mantém uma estrtutura “hipócrita, burocrata, corrupta e disfuncional” (Foto: Divulgação/Enhanced Games)

“Show de gladiadores” 

Como era de se esperar, a confirmação dos Enhanced Games provocou uma condenação veemente por parte das principais organizações esportivas globais. Começando pela própria WADA. 

Segundo a agência antidoping, a realização dos jogos não representa somente uma “ameaça ao esporte limpo”; para a entidade, ela é “perigosa e irresponsável, pois ignora décadas de evidências médicas”. A WADA também chama a atenção para o risco de “violação de leis criminais”. 

Para o COI, a competição criada por Aron D’Souza “trai tudo que prezamos” e “destrói qualquer ideia de fair play e competição justa no esporte”. O comitê também criticou o conceito de “corpo soberano” — “Completamente em desacordo com os valores dos Jogos Olímpicos”. 

A Agência Antidoping da China chamou o evento de “competição de drogas” e “show de gladiadores”, enquanto a Sport Integrity Australia — organização criada pelo Parlamento Australiano para combater o uso substâncias e métodos proibidos — emitiu um alerta para todos os atletas do país.

Sebastian Coe, duas vezes campeão olímpico no atletismo e presidente da World Athletics (antiga Associação Internacional de Federações de Atletismo), divulgou pessoalmente um comunicado indicando que os participantes dos Jogos Aprimorados enfrentarão longas suspensões. 

E, no último dia 3, a World Aquatics, órgão regulador da natação, aprovou uma nova regra para banir atletas, treinadores, médicos e dirigentes que “endossem o doping ou participem de eventos esportivos que adotam o uso de avanços científicos ou outras práticas semelhantes”.

Efeitos colaterais tardios 

Mesmo a USADA, a agência Anti-Doping dos Estados Unidos, “casa” dos Enhanced Games, expressou uma forte oposição aos jogos. Travis Tygart, CEO da entidade, classificou o projeto como um “espetáculo de palhaços perigoso, que coloca o lucro acima dos princípios” e “provavelmente ilegal em muitos estados”. 

Já o diretor científico da USADA, o médico Matt Fedoruk, fez um alerta sobre os efeitos colaterais negativos do uso de substâncias proibidas — que podem surgir anos depois de os atletas se submeteram a esses tratamentos. 

Segundo ele, faltam dados robustos para comprovar a segurança dos PEDs, especialmente os compostos mais novos. Fedoruk ainda lista os principais problemas de longo prazo observados em atletas dopados: aumento do coração, enrijecimento da parede cardíaca, riscos de ataques cardíacos e disfunção reprodutiva. 

Os organizadores dos Jogos Aprimorados, contudo, argumentam que a segurança dos participantes será garantida por um “protocolo abrangente de triagem médica”, acompanhamento contínuo e equipamentos de última geração para monitorar marcadores de saúde. 

O evento conta com um “diretor de segurança”, o fisiologista Dan Turner, consultor em Medicina de Desempenho do Hospital Mount Sinai, em Washington — e que descreve toda essa abordagem como “muito personalizada”. 

Novo modelo de negócios 

Os Enhanced Games vêm sendo vendidos como um experimento para “redefinir os limites humanos”, “estimular a longevidade” e “inventar humanos 2.0”, entre outros slogans repetidos pelos organizadores. Porém, sob o discurso de seus ideólogos, está sendo gestado um modelo de negócios tão ambicioso quanto as propostas esportivas e científicas do evento. 

D’Souza e companhia planejam criar uma categoria de patrocínio totalmente nova, voltada para empresas que geralmente não anunciam na mídia de entretenimento, como as de biotecnologia e farmacêutica (e aqui não estamos falando de remédios comuns, mas de novas terapias e tratamentos avançados). 

A transmissão dos jogos também inclui a promessa de um “novo formato digital totalmente imersivo”, pensado para transformar a experiência do público.

Além disso, os investidores preparam o lançamento de uma empresa própria de “produtos para o aprimoramento de desempenho cientificamente validados”, que vai operar por meio de um sistema de telemedicina (baseado em consultas, diagnósticos e prescrições online).  

Ou seja, os Enhanced Games serão, em essência, a grande vitrine dessa indústria potencialmente multimilionária — um objetivo que Aron D’Souza jamais escondeu. Como ele mesmo diz: “É o projeto de um século. Não estamos no negócio de esportes. Estamos no negócio de ciência e mudança cultural”.

noticia por : Gazeta do Povo

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