domingo, 1, junho , 2025 01:40

Do RPG ao pagodão: a nova leva de teses acadêmicas pagas com seu dinheiro 

Por ano, o país produz cerca de 85 mil dissertações de mestrado e teses de doutorado. A qualidade desses trabalhos oscila tanto quanto os temas escolhidos. O que varia pouco é o fato de que o poder público financia a maioria dessas pesquisas. Quando não são produzidas em universidades públicas, as dissertações e teses muitas vezes são bancadas com bolsas do governo federal. 

E, embora a produção acadêmica do Brasil tenha trabalhos de relevância global, não é difícil achar pesquisas que se destacam pelo tema peculiar, pela abordagem incomum ou pela intrusão de termos ideológicos nos lugares mais inesperados. 

A Gazeta do Povo compilou 15 desses trabalhos. Todos foram apresentados entre 2024 e 2025, e fazem parte de um grupo de 3.000 trabalhos acadêmicos agrupados com o uso da ferramenta Google Pinpoint, que permite a análise de documentos em larga escala.  

Esta é a mesma base de dados que revelou os autores mais citados na academia brasileira: Paulo Freire, Karl Marx e Michel Foucault.  

Veja abaixo os destaques da lista, com seus títulos originais.

1) Rasgando a fantasia: Processos de subjetivação, fabulação e audiovisualização de corpos nas redes educativas das ‘práticasteorias’ pornocurriculares

Curso: Doutorado em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) 

Autor: Vinicius Leite Reis 

Orientadora: Maria da Conceição Silva Soares 

Detalhe: Escrita em primeira pessoa, essa tese de doutorado é imprópria para menores de 18 anos e inclui imagens pornográficas. 

Trecho: “Podemos dizer que o objetivo geral desta pesquisa é pensar a dimensão do erótico na produção dos corpos, compreendendo tal produção a partir de redes educativas das ‘práticasteorias’ pornocurriculares, atuantes no ‘dentrofora’ das escolas e nas vivências tecidas com a cibercultura e instituintes de redes de ‘práticasteorias”.

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2) Vencendo nas entregas: a dupla jornada plataformizada de entregadores- influencers 

Curso: Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 

Autora: Nina Desgranges Valladão 

Orientador: Bruno de Vasconcelos Cardoso 

Detalhe: A dissertação desvenda o fascinante mundo dos motoboys youtubers, com referências negativas a ele — o neoliberalismo.  

Trecho: “O tipo de conteúdo vai de encontro exatamente às características principais do cachorro louco, sempre flertando com o perigo e exaltando o risco, marcado pelo individualismo do empreendedorismo de si neoliberal, pelas dificuldades da inserção periférica na economia, com uma linguagem marcada pelo humor e por referências ao mundo masculino – como por exemplo, situações envolvendo namoradas ou clientes mulheres.”

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3) Além do RPG: aspectos do universo transmidiático de Dungeons & Dragons

Curso: Mestrado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais

Autor: Mateus Pegoraro de Freitas 

Orientador: Marcio de Vasconcellos Serelle 

Detalhe:  A dissertação é recheada de imagens de jogos de videogame. Apesar de ter sido produzida em uma universidade particular, o trabalho foi financiado com uma bolsa da Capes. 

Trecho: “Dentro da intertextualidade do heterocosmo estabelecido, a mídia interativa, como é o caso de Baldur’s Gate III (2023), poderá influenciar as narrativas de uma mesa de RPG, ao passo que jogadores e narradores poderão fazer mediações e interpretações carregadas com os sentidos adquiridos ao interagir com o jogo é o prazer intelectual e estético derivado da transmidialidade presente no universo ficcional e no game, que, ao explorar as interações dentro de uma obra e entre diferentes obras, amplia os possíveis significados de um texto ao favorecer o diálogo intertextual”.

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4) Documentário e ensino de história: uma desconstrução do discurso neoliberal a partir da análise de “Ascensão e queda do Muro de Berlim”- 2009 

Curso: Mestrado em História na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) 

Autor: Leonardo Angrisano 

Orientadora: Aline Vanessa Locastre 

Detalhe: São 147 páginas tentando mostrar como um documentário do History Channel é na verdade um produto da hegemonia cultural capitalista neoliberal estadunidense. Segundo o autor, cabe aos professores contestar essa “hegemonia” em sala de aula. 

Trecho: “Não podemos esquecer também, que um documentário como “Ascensão e queda do Muro de Berlim”, é um produto de uma indústria cultural norte-americana, utilizado para propagar discurso hegemônico e de senso comum sobre a Guerra Fria, assim como centenas de outros filmes em que os Estados Unidos são glorificados como defensores do mundo livre, e o “modo de vida norte-americano” é exaltado, contrapondo-se às sociedades comunistas “cinzentas”, sem liberdade e opressivas dos chamados países da “cortina de ferro”. Por outro lado, ao discursar sobre a História, documentários como este, podem esconder e distorcer os fatos. Cabe ao professor de História promover o debate e estabelecer o contraditório, combatendo assim mistificações referentes as discussões históricas de maneira a ter uma visão dialética do passado”.

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5) Assimilação e resistência na exportação/tradução de quadrinhos brasileiros para o mercado estadunidense: o caso de Valente e Daytripper 

Curso: Mestrado em Estudos Linguísticos na Universidade Estadual Paulista (UNESP) 

Autor: Pedro Viana Mouro 

Orientador: Lauro Maia Amorim 

Detalhe: A obra analisa a presença do imperialismo “estadunidense” por uma nova perspectiva: a tradução de gibis brasileiros para o inglês.  

Trecho: “Quanto ao imperialismo, seguimos o conceito de acordo com a definição de Lenin (2011): “O imperialismo, ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior […]. O predomínio do capital financeiro sobre todas as demais formas do capital implica o predomínio do rentista e da oligarquia financeira, a situação destacada de uns quantos Estados de ‘poder’ financeiro em relação a todos os restantes”.

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6) “Elas que se bancam”: uma contextualização radical da mulher negra no pagodão 

Curso: Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal de Salvador (UFBA) 

Autora: Amanda Gomes da Silva Barbosa 

Orientadora: Itania Maria Mota Gomes 

Detalhe: Essa dissertação faz usa os “feminismos negros” para apresentar uma “contextualização radical” da mulher negra no pagodão “a partir da própria experiência da autora”. O pagodão é um estilo musical também conhecido como pagode baiano. 

Trecho: “O tema é complexo: o pagodão confronta expectativas de respeitabilidade e moralidade ocidentais, brancas e coloniais (PINHO, 2021), ao mesmo tempo em que, a meu ver, reitera performances cisheteronormativas e de hipersexualização de pessoas negras”.

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Curso: Doutorado em Geografia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) 

Autora: Rosângela Palhano Ramalho 

Orientador: Ivan Targino Moreira 

Detalhe: O trabalho tenta explicar como os agricultores familiares da Paraíba oferecem uma “estratégia de resistência ao capitalismo” em busca pela “emancipação social”. 

Trecho: “Somadas às lutas e conquistas passadas, os agricultores familiares resistem no presente e constroem o futuro. Resistem lutando pelo direito de trabalhar na terra; resistem quando encaram e eliminam a figura do atravessador; resistem “ousando” produzir fora dos moldes ditados pelo capitalismo; resistem estimulando as relações solidárias; resistem encarando o poder do agronegócio; e por fim, resistem ao utilizar formas não-predatórias ao meio ambiente, estimulando o consumo consciente”.

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8) Vivências e (R)existências do professor gay: uma análise de sua corporeidade em escolas da rede pública e privada de Viçosa (MG) em 2024 

Curso: Mestrado em Geografia na Universidade Federal de Viçosa (UFV)

Autor: Marco Túlio da Cunha Silva Moreira 

Orientador: Leomar Tiradentes 

Detalhe: O autor, que é professor na rede pública de ensino, entrevistou colegas gays sobre as interações deles com alunos e funcionários. Alinhado com o linguajar pós-moderno, ele fala em “corpos gays” em vez de simplesmente falar “pessoas gays” ou “homossexuais”. 

Trecho: “Os discentes, especialmente os mais jovens, tendem a mostrar maior aceitação e respeito pela diversidade sexual, muitas vezes encontrando no corpo do professor gay modelos positivos de identificação. Nesse sentido, relatos supramencionados dos entrevistados indicam que estudantes se sentem à vontade para discutir suas próprias questões de identidade e sexualidade, percebendo na corporeidade do docente gay uma figura de apoio e representação”.

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9) Encontros e outras andanças: experimentações em uma educação (matemática)

Curso: Doutorado em Educação Matemática na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) 

Autor: João Paulo Risso 

Orientador: Thiago Donda Rodrigues 

Detalhes: Esta não é apenas uma tese. É o que o autor chama de“tese-romance-manifesto”. Um dos objetivos é mostrar como o ensino da matemática pode ser usado para falar de gênero e aborto em sala de aula. 

Trecho: “A presente pesquisa objetiva construir experimentações do pensamento como convites a professores/as de matemática (em atuação e em formação) a não ignorarem as injustiças de nosso tempo, engajando-se em lutas e projetos sociais e tornando-se docentes militantes. Apresentaremos nas próximas linhas uma tese-romance-manifesto, que acompanha a vida do personagem João, um doutorando em Educação Matemática. Com ela, que pode ser considerada uma experimentação que se inscreve na interface entre Literatura, Filosofia da Diferença, Educação (Matemática) e outros territórios, mobilizamos alguns conceitos e ideias de Gilles Deleuze, Félix Guattari, Silvio Gallo, bell hooks, Clarice Lispector, Ubiratan D’Ambrosio, Carolina Maria de Jesus, Buchi Emecheta e outras autoras e autores”.

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10) A fantasia na obra de Freud: um percurso entre trauma, desejo e pulsão 

Curso: Mestrado em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo 

Autora: Isabela Nogueira Falchetto 

Orientador: Fábio Santos Bispo 

Detalhe: A autora se propõe a fazer um “percurso teórico-conceitual orientado pela noção de fantasia na obra de Freud”.  

Trecho: “Na sexualidade infantil, as trocas que as zonas erógenas realizam com a alteridade são percebidas como montantes de excitação sexual, o que inicialmente é independente da qualidade do prazer ou da dor. Esses traços associados ao prazer e à dor deixam rastros que subvertem o funcionamento temporal e se repetem no Presente.”

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11) A via boliviana: um projeto de transição. Da guerra da água ao golpe do lítio 

Curso: Doutorado em Economia Política Mundial na Universidade Federal do ABC 

Autor: Fabio Sousa Mendonça de Castro 

Orientador: Paris Yeros 

Detalhe: Um dos pilares desta tese de doutorado é a crença de que o capitalismo é inerentemente racista, e que nesse sistema a pele europeia branca “seria supostamente superior a todas as demais”. 

Trecho: “O sistema colonial promoveu a escravização dos nativos sobreviventes e/ou dos sequestrados da África como raças inferiores. Trata-se de uma artimanha determinante para a formação social do capitalismo, delimitar a existência de uma variedade de raças humanas, destacadas pela cor da pele, cuja europeia branca seria supostamente superior a todas as demais.”

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12) Corpurano: torções sobre os corpos, gêneros e sexualidades na educação em ciências 

Curso: Doutorado em Educação em Ciências na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) 

Autora: Cintia Müller Leal 

Orientadora: Rochele de Quadros Loguercio 

Detalhe: Nesta tese, a autora usa um vocabulário quase ininteligível para defender o uso das ciências como uma forma de enfrentar o “ultraconservadorismo”. 

Trecho: “O corpo multitudinário, em sua ‘biopotência da multidão’ é um revide ao niilismo biopolítico que engole brutalmente todas as formas de vida com seu produtivismo desenfreado e a precarização generalizada (Pelbard, 2019), soprando um vento contagioso que intensifica a vida, ao produzir um corpo pleno de desejo, que não reclama ou choraminga a falta, a culpa ou a vergonha, um corpo que produz linhas de fuga ativas e positivas, fazendo passar fluxos sob os códigos sociais que insistem em querer barrá-lo, canalizá-lo (Deleuze, 2017, p 30). É um corpo que prolifera contranarrativas e enfrenta os discursos de ódio e as estratégias ultraconservadoras na educação em ciências, contribuindo com docentes que queiram assumir a responsabilidade de pensar modos mais justos de enfrentar as violências LGBTfóbicas na escola”.

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13) Perspectivas político-pedagógicas críticas na educação em astronomia na interface da base nacional comum curricular 

Curso: Mestrado em Educação para a Ciência e a Matemática na Universidade Estadual de Maringá

Autor: Marcos Orso da Fonseca

Orientador: Michel Corci Batista

Detalhe: Aqui, as ideias de Paulo Freire (citado mais de 350 vezes) são aplicadas ao ensino da astronomia.

Trecho: “Uma educação que oculte problemas sociais, que oculte relações de poder nunca será democrática, crítico-emancipadora ou terá respeito pelos direitos humanos. Nesse sentido, a teoria de Freire se mostra coerente, traçando o oposto daquilo que uma educação neoliberal, ultraconservadora e excludente, se propõe. E isso deve ser lembrado: o apagamento de grupos sociais indesejados é comum e recorrente nos movimentos de direita.”

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14) Mudando o final: experiência estética em atividades de leitura literária na prisão, para além da remição de pena

Título: “Uma educação que oculte problemas sociais, que oculte relações de poder nunca será democrática, crítico-emancipadora ou terá respeito pelos direitos humanos. Nesse sentido, a teoria de Freire se mostra coerente, traçando o oposto daquilo que uma educação neoliberal, ultraconservadora e excludente, se propõe. E isso deve ser lembrado: o apagamento de grupos sociais indesejados é comum e recorrente nos movimentos de direita.”

Curso: Doutorado em Educação na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.

Autora: Vanusa Maria de Melo

Orientadora: Rosália Maria Duarte 

Detalhe: A tese traz uma defesa do desencarceramento e repete a teoria, pouco fundamentada, de que o sistema de Justiça é inerentemente racista. Para isso, a autora recorre à obra de Silvio Almeida, o ex-ministro dos Direitos Humanos que caiu em desgraça depois de ser acusado de assédio sexual.

Trecho: “Aos poucos, visualizamos um cenário legitimador da metáfora “máquina de moer gente” para definir a prisão (Lourenço Filho, 2018). Temos desigualdades profundas, um Estado que não garante direitos básicos e, especificamente no Rio de Janeiro, uma “guerra” que justifica o extermínio da juventude negra e pobre e o encarceramento em massa, a guerra contra o tráfico vitimiza a parcela mais pobre, sobretudo as populações das favelas, diariamente. Temos ainda um sistema punitivo que isola apenados e custodiados, apesar de insistir na retórica da ressocialização, impedindo ou dificultando ao máximo o convívio social.”

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15) O papel das arenas de pactuação na política ambiental brasileira

Curso: Mestrado em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais

Autora: Ana Luiza Martins de Medeiros 

Orientador: Natália Guimarães Duarte Sátyro 

Detalhe: Parte da dissertação tenta demonstrar como as questões de raça e de gênero são importantes para o combate às mudanças climáticas. 

Trecho: “Neste contexto, é possível sublinhar o entrelaçamento dos efeitos das mudanças climáticas com o conceito de racismo ambiental. Isto, pois, o conceito ilumina como a distribuição de impactos ambientais ocorre de maneira desigual, afetando principalmente populações que são atravessadas por desigualdades sociais, raciais e de gênero.”

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VEJA TAMBÉM:

noticia por : Gazeta do Povo

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