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segunda-feira, fevereiro 3, 2025

Companhias aéreas lucram alto com programas de fidelidade, mas modelo dá sinais de esgotamento

Matt Jones não é um passageiro frequente comum.

Quando o ex-contador foi de Londres à Cidade do Cabo neste inverno, ele evitou voos diretos noturnos que ligam as duas cidades.

Em vez disso, embarcou em uma jornada de cinco voos em quatro companhias aéreas, indo de Londres para Oslo e depois para Zurique, Joanesburgo e Windhoek, na Namíbia. Ele finalmente chegou ao seu destino após mais de quatro dias de viagem.

Sua missão era criar uma combinação de rotas para alcançar o status “ouro” no programa de fidelidade de uma das aéreas do grupo Star Alliance, desbloqueando acesso a 1.000 lounges e tratamento especial em mais de 25 companhias, incluindo Lufthansa, Singapore Airlines e United Airlines.

A dedicação mostra o quanto os programas significam para algumas pessoas. Estes incluem tanto os esquemas de milhas aéreas, que permitem aos clientes ganhar pontos e depois trocá-los por voos, quanto programas de status separados, que oferecem aos melhores clientes benefícios que vão do acesso a lounges a carros com motorista.

Jones, que documenta suas viagens em um popular canal do YouTube, integra uma comunidade global de viajantes que pesquisam como ganhar milhas aéreas e alcançar o status de passageiro frequente da forma mais eficiente possível. “Você tem que gostar mais da parte da viagem de avião do que do próprio destino”, admite.

Para as companhias aéreas, os esquemas de fidelidade —e em particular os programas de milhas aéreas— fazem mais do que incentivar a repetição de clientes. Eles cresceram e se tornaram negócios multibilionários que podem ser mais lucrativos do que os próprios voos.

Ao vender pontos ou milhas aéreas para terceiros, como bancos ou empresas de cartão de crédito, as aéreas criaram uma fonte de receita valiosa. Os programas de fidelidade das três maiores companhias aéreas dos EUA sozinhos valiam US$ 73,8 bilhões (R$ 429,7 bi) em 2023, segundo dados da consultoria On Point Loyalty.

Mas à medida que muitas companhias relatam demanda recorde por voos, há sinais de que o modelo construído ao longo dos últimos 40 anos está sobrecarregado.

Os lounges estão lotados conforme mais pessoas viajam em cabines premium, gastam pontos acumulados durante a pandemia e aprendem métodos para ganhar pontos e status sem voar muito.

Observadores da indústria alertam que as empresas correm o risco de perder de vista o fato de que esses programas são projetados para atrair clientes, e não apenas para gerar lucro. Fazer isso pode prejudicar a lealdade do cliente —e a lucrativa fonte de receita da qual as aéreas podem precisar quando o atual superciclo de voos terminar.

“Do ponto de vista dos negócios, está definitivamente em alta. Mas também é meu trabalho nunca perder de vista nossos clientes e membros… e qualquer programa que perca isso estará em apuros”, diz Anthony Woodman, chefe do negócio de fidelidade da Virgin Atlantic.

Os primeiros grandes programas de fidelidade surgiram no início dos anos 1980, após a desregulamentação da indústria dos EUA.

Enfrentando rivais de baixo custo, chefes da American Airlines perceberam que precisavam ter uma forma de incentivar os passageiros a continuar voando com eles, mesmo que outras empresas oferecessem assentos mais baratos.

Eles adotaram um sistema inicial bastante rudimentar: a adesão era apenas por convite e os clientes recebiam recompensas fixas —de upgrades a voo gratuito em primeira classe— dependendo de quantas milhas haviam voado.

O objetivo era executá-lo apenas por um ano, mas os rivais da American seguiram o exemplo em poucas semanas, e o boom da fidelidade das companhias aéreas começou.

As companhias logo se uniram a seus parceiros para que os pontos pudessem ser usados em várias empresas das alianças, expandindo a escala dos planos de fidelidade e transformando-os em negócios globais.

Mas as coisas realmente mudaram em 1987, quando a American Airlines se juntou ao Citibank para lançar um cartão de crédito co-branded, oferecendo aos usuários milhas aéreas para cada dólar gasto. Este esquema de venda de pontos para instituições financeiras transformou os programas de milhagem em negócios complexos, mas altamente lucrativos, por si só.

Em teoria, pelo menos, parece um modelo de negócios quase perfeito: as companhias aéreas podem criar quantos pontos quiserem do nada e depois vendê-los para bancos e empresas de cartão de crédito. Elas também podem vender milhas para hotéis parceiros, empresas de aluguel de carros ou lojas, tornando-se, na prática, os bancos centrais de um ecossistema financeiro pouco regulamentado.

Enquanto as aéreas desfrutam de receita instantânea ao vender milhas para bancos e outros terceiros, o custo dos clientes para resgatar pontos através da reserva de assentos é adiado para o futuro, diz John Grant, executivo da empresa de dados de companhias aéreas OAG.

Muitos nunca os gastam. Em 2018, a consultoria McKinsey estimou que havia 30 trilhões de milhas aéreas não resgatadas em contas de clientes, o suficiente para quase todos os passageiros de avião do mundo fazerem um voo só de ida gratuito.

Esses negócios leves em ativos são particularmente atraentes para as companhias aéreas. O trabalho real de operar voos é intensivo em capital, exposto a recessões econômicas e com altos custos fixos. Alguns deles, como combustível, estão fora do controle das empresas.

A dependência das companhias desses negócios ficou clara durante a pandemia, quando as quatro maiores transportadoras dos EUA colocaram seus programas de fidelidade como garantia para ajudá-las a levantar novas dívidas.

Na época, as avaliações colocadas nos planos de fidelidade superaram em muito as capitalizações de mercado das companhias aéreas em dificuldades, sugerindo que valiam mais do que as operações de voo.

Mesmo no auge da interrupção em julho de 2020, a American Express pagou 750 milhões de libras (R$ 5,4 bi) para estender sua parceria com o International Airlines Group, dono da BA (British Airways). Uma parte significativa desse valor foi usada para pré-comprar pontos Avios de passageiro frequente.

A IAG Loyalty, casa do Avios, reportou um lucro operacional de 321 milhões euros (R$ 1,9 bi) em 2023. Sua margem operacional em 2023 —21%— foi mais que o dobro da Aer Lingus, uma das aéreas do grupo, ou da BA.

No entanto, rachaduras começaram a surgir nos programas desde o fim da pandemia.

Algumas gestoras de companhias aéreas perceberam que muitos passageiros têm status de elite e centenas de milhares de milhas acumuladas durante o lockdown, quando os voos foram suspensos e as viagens restritas.

As salas VIP também se encheram em meio a um boom nas viagens de negócios e de primeira classe, particularmente de viajantes de lazer, que geralmente passam mais tempo aproveitando as vantagens do status de passageiro frequente.

Muitas companhias reagiram apertando gradualmente as regras dos planos, focando seus programas de recompensa apenas nos clientes que trazem mais receita.

Nos EUA, a Delta Air Lines anunciou em 2023 que seu programa SkyMiles iria começar a alinhar as recompensas com o quanto os clientes gastam —seja com a companhia ou em um cartão de crédito co-branded—, em vez de quão longe eles voam. Eles também restringiram quantas vezes clientes de cartões de crédito de menor gasto podem acessar as salas VIP.

No Reino Unido, a BA enfureceu alguns clientes no mês passado ao anunciar mudanças semelhantes em seu programa. Em Londres, viajantes indignados escreveram cartas abertas ao CEO da BA, ameaçaram mudar para seus rivais e até fizeram planos para um “velório” para o antigo esquema.

A partir de abril deste ano, os “Tier Points” da BA serão concedidos com base no custo dos voos ou nas reservas de pacotes de férias. Atualmente, o status é calculado com base na classe e na duração das viagens, o que beneficia pessoas dispostas a buscar rotas longas, mais baratas e menos populares para atingirem o status de elite.

Muitos passageiros acolheram as mudanças, citando em particular as salas VIP lotadas. Outros dizem que a BA elevou demais o nível de entrada. As regras são complexas, mas alcançar o status ouro agora pode significar gastar cerca de 20 mil libras (R$ 144,9 mil) por ano em voos.

“Realisticamente, agora será impossível para pequenos viajantes de negócios, passageiros de classe econômica ou de lazer autofinanciados atingirem o nível ouro”, diz Rob Burgess, editor do site de passageiros frequentes Head for Points.

Um ex-executivo sênior da BA diz que isso em parte é o objetivo das mudanças —que já estavam atrasadas. Ficou muito fácil ganhar status de elite sem gastar muito dinheiro com a companhia aérea, especialmente com especialistas como Jones oferecendo guias sobre como fazer isso da maneira mais eficiente.

A BA disse que as mudanças estavam sendo projetadas há quase dois anos e foram “baseadas em extensas modelagens do comportamento dos clientes” e nos programas de outras companhias “para garantir que estamos acertando o equilíbrio.”

O próprio Jones espera que as novas regras o tirem do nível ouro da companhia. “Parece que um dos meus hobbies favoritos será tirado de mim. Tem que funcionar para as companhias aéreas, absolutamente. Mas também tem que ser realista para o consumidor”, observa.

“Empresas ficaram tentadas a ver os planos em primeiro lugar como geradores de receita em vez de ferramentas para influenciar o comportamento dos clientes ou melhorar as experiências dos passageiros”, disseram analistas da McKinsey em um relatório de 2023.

Muitos clientes dizem que está cada vez mais difícil resgatar milhas, em parte porque as aeronaves estão mais cheias do que antes, então há menos assentos disponíveis para dar aos passageiros regulares.

Um executivo sênior do setor diz que sempre houve uma tensão competitiva dentro das empresas entre os executivos que gerenciam os negócios de fidelidade —que querem oferecer bons assentos para reter clientes—, e as equipes de gerenciamento de receita —que focam em oferecer lugares que de outra forma não seriam vendidos.

À medida que as aéreas ficam cada vez mais habilidosas em usar tecnologia para prever quais assentos não serão vendidos, quem esperam por um assento em uma rota popular fica cada vez mais desapontado.

Para Tom Peace, diretor-gerente da consultoria The Loyalty People, isso é contraproducente para os esquemas de fidelidade, pois os passageiros são mais propensos a tentar ganhar pontos se sentirem que poderão gastá-los.

As aéreas também podem desvalorizar pontos à vontade, gerando preocupação sobre a concorrência de direitos do consumidor, particularmente nos EUA, onde a indústria se concentra em quatro grandes transportadoras.

Sob a gestão Biden, em setembro, o Departamento de Transportes dos EUA lançou uma investigação sobre planos de recompensas em quatro companhias, com foco no que foi chamado de “desvalorização das recompensas ganhas, preços ocultos ou dinâmicos, taxas extras e redução da concorrência e escolha”.

A investigação foi instaurada meses depois de Rohit Chopra, chefe do Bureau de Proteção Financeira do Consumidor, dizer que a agência havia descoberto que empresas de cartão de crédito e companhias aéreas “têm o poder de desvalorizar rápida e dramaticamente… pontos”.





Também observamos que as companhias vendem pontos aos consumidores a taxas inflacionadas, enquanto vendem esses mesmos pontos aos emissores de cartões de crédito a um preço muito mais baixo. Isso não apenas cria confusão sobre o verdadeiro valor dos pontos, mas também levanta questões sobre justiça

Talvez o maior desafio enfrentado pelos programas de fidelidade seja a crescente evidência de que os próprios passageiros estão ficando menos leais.

A McKinsey apontou para pesquisas de 2021 e 2023 que revelaram “um declínio acentuado na probabilidade de um cliente recomendar programas de fidelidade de companhias aéreas, hotéis e cruzeiros a um amigo ou colega”.

Acrescentando que a tendência é ainda mais pronunciada entre os mais jovens. Aqueles com menos de 40 anos geralmente estão gastando com um número maior de marcas do que os mais velhos, cujo gasto é mais concentrado.

“Se você não pode usar esses pontos, não se dará ao trabalho de ganhá-los. É preciso encontrar maneiras flexíveis e valiosas para as pessoas gastarem esses pontos”, ele diz.

Reconhecendo a possível frustração, algumas companhias estão dispostas a sacrificar receita para manter os programas. A BA, por exemplo, afirma que pelo menos 14 assentos em cabines de cada voo de longa distância serão vendidos pelo programa de fidelidade, em vez de no mercado aberto.

Desde 2023, a BA também opera voos exclusivamente com Avios, nos quais todos os assentos vendidos são através das milhas aéreas.

As companhias também estão oferecendo outras formas de gastar milhas para além de voos.

As lojas online dos planos de fidelidade vendem de tudo, desde o mais novo iPhone —a partir de 314 mil milhas na Worldshop da Lufthansa— até bolsas de luxo e remessas de vinho para coleta no aeroporto ou entrega em casa.

Os membros do programa de fidelidade da Virgin podem gastar pontos em poltronas de camarote VIP na O2 Arena de Londres. A Qatar Airways, que usa a mesma moeda Avios que a BA, introduziu um novo serviço que permite usar pontos para dar lances em eventos, incluindo partidas da Liga dos Campeões da Uefa.

Aéreas como Saudia, Alaska Airlines e AirAsia estão oferecendo planos de assinatura —permitindo aos passageiros um número definido de viagens por ano por uma taxa regular— como uma nova forma de impulsionar e monetizar a lealdade do cliente.

Mas Woodman, da Virgin Atlantic, adverte que a devoção a uma marca é impulsionada tanto pela experiência quanto pelos benefícios.

“A maior questão é se os clientes realmente querem ter o relacionamento subjacente com a marca ou não. Se não quiserem, o programa de fidelidade só pode ir até certo ponto para preencher essa lacuna”, aponta.

noticia por : UOL

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