quarta-feira, 30, abril , 2025 01:03

Série 'O Eternauta' tem mensagem atual, mas perde nervo político

Em 1957, o roteirista Héctor Germán Oesterheld e o desenhista Francisco Solano López lançaram “El Eternauta”, na revista “Hora Cero Semanal”, marcando para sempre a história das histórias em quadrinhos na Argentina e na América Latina. Mais de seis décadas depois, a Netflix estreia, no dia 30 de abril, uma aguardada adaptação seriada dessa obra icônica. Por trás dela, está o criador de vários clássicos do cinema alternativo argentino, Bruno Stagnaro, de “Pizza, Birra, Faso” e “Okupas”.

O custo de torná-la uma obra para a Netflix talvez tenha sido tirar dela algo do humor portenho e da particularidade das relações entre os homens neste país, algo que dá para um tratado a parte.

Com Ricardo Darín no papel de Juan Salvo, a série apresenta uma Buenos Aires sitiada por uma ameaça silenciosa e mortal: uma neve tóxica que mata qualquer um que se exponha a ela. A caracterização pós-apocalíptica da capital argentina não perde nada a Londres vazia encontrada pelo personagem de Cillian Murphy, em “Extermínio: (2002), quando deixa o hospital depois de a cidade ter sido devastada por zumbis.

A produção foi, de fato, monumental: dois anos de desenvolvimento de roteiros, quatro meses e meio de pré-produção, 148 dias de filmagens e mais de um ano e meio de pós-produção. Mais de 2.900 pessoas —entre elenco, figurantes e equipe técnica— trabalharam em 50 locações reais e 30 cenários virtuais, além da criação de 500 máscaras usadas pelos personagens, num esforço para equilibrar realismo e ficção científica sem recorrer ao espetáculo excessivo.

Desde o início, a ambientação é impactante: ruas cobertas de neve, cadáveres por toda parte, carros abandonados e prédios desolados. Mas “El Eternauta” não é apenas uma obra sobre uma invasão alienígena iminente —é, sobretudo, uma reflexão sobre a fragilidade das estruturas sociais e a essência do comportamento humano diante da adversidade. Isso, num país que teve um século 20 atravessado por vários golpes de Estado e abusos contra os direitos humanos.

A narrativa aposta num crescimento gradual da tensão: os protagonistas, isolados e sem comunicação, demoram a entender a real dimensão da ameaça. A construção é cuidadosa, e apenas a partir do quarto episódio o espectador começa a vislumbrar a verdadeira natureza do perigo. Nesse percurso, as atuações ganham destaque: Ricardo Darín, mesmo oculto atrás de uma máscara de proteção, transmite emoções intensas apenas com o olhar. Seu Juan Salvo é descrito como um idealista e um valente, mas também como um homem comum, dividido entre a coragem e o medo.

A adaptação dirigida por Stagnaro opta por valorizar o grupo de sobreviventes —personagens de idade mais avançada, que viveram fases de crises anteriores da Argentina— que encontram, na necessidade de resistir, uma nova razão para lutar.

Essa perspectiva, reforçada pelas palavras de Darín em entrevistas recentes, ecoa ainda mais forte no contexto atual de crise política (polarização e fragmentação dos partidos) e social (pobreza) da Argentina, onde temas como solidariedade e resistência voltam a ganhar relevância. “El Eternauta” reafirma a ideia de que “ninguém se salva sozinho”, numa época em que o culto ao individualismo se acentuou.

“El Eternauta” sempre teve esse crivo político em sua interpretação. Durante a era kirchnerista, a imagem de Néstor Kirchner foi associada ao “Nestornauta” —uma figura de resistência frente a ameaças invisíveis. Hoje, é a estampa que figura nas bandeiras da associação juvenil peronista La Cámpora. Embora a série da Netflix escolha não explorar diretamente essas leituras políticas, a memória de Oesterheld —desaparecido durante a ditadura militar junto com suas filhas— permanece como uma camada subterrânea de significado.

Contudo, é justamente nesse movimento de aproximação ao universal que a adaptação corre riscos. Ao tentar tornar “El Eternauta” uma narrativa de sobrevivência global, a série atenua alguns dos elementos que fizeram da obra original uma reflexão tão intimamente ligada à história, às feridas e às esperanças argentinas. A Buenos Aires nevada e desolada ainda impacta, mas, em vários momentos, poderia ser qualquer outra metrópole do mundo contemporâneo.

Em nome da universalidade, a produção sacrifica parte do espírito mais enraizado na memória coletiva local —aquele que transformou “El Eternauta” não apenas num clássico da ficção científica, mas num símbolo de resistência e identidade. Ainda assim, como homenagem e como produção audiovisual, a série é poderosa e emocionante. Talvez falte-lhe um pouco do nervo político e social que fez da obra original um grito inesquecível nas páginas de “Hora Cero”. Mas mesm o assim, sua mensagem sobre a luta coletiva, a solidariedade e a condição humana permanece atual.

noticia por : UOL

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

PUBLICIDADE

NOTÍCIAS

Leia mais notícias