As mulheres e pessoas que menstruam não são as mesmas todos os dias do mês. Disposição, desempenho e até funcionamento cognitivo podem mudar ao longo das fases do ciclo menstrual, formado pelas etapas de menstruação (descamação do útero), fase folicular (amadurecimento do óvulo), ovulação (óvulo pronto para fecundação) e fase lútea (desintegração do óvulo).
Em pessoas com ciclo menstrual ativo e natural, hormônios sexuais como progesterona e estrogênio guiam essas mudanças. Essas oscilações estão começando a ser compreendidas mais profundamente pela ciência agora.
Estudo publicado na Human Brain Mapping em 2024 mostrou que as variações hormonais que acontecem no ciclo menstrual provocam mudanças estruturais no cérebro. Realizada por pesquisadoras da Universidade da Califórnia, a pesquisa aponta que não somente partes do cérebro relacionadas ao ciclo menstrual são afetadas por ele, mas também o volume da massa cinzenta, branca e do líquido cefalorraquidiano (que envolve o cérebro) muda conforme as fases avançam.
De acordo com o artigo, a progesterona —hormônio sexual que aumenta a partir da ovulação, na segunda metade do ciclo— está associada ao aumento do tecido cerebral e à diminuição do líquido cefalorraquidiano. Esses resultados foram os primeiros a comprovar mudanças simultâneas em todo o cérebro na microestrutura da substância branca e na espessura do córtex, coincidindo com os ritmos hormonais do ciclo menstrual.
Outro estudo, de 2020, verificou que a progesterona é responsável por causar alterações no volume do lobo temporal medial no cérebro humano. Publicado na revista NeuroImage, o artigo compara o cérebro de uma pessoa com ciclo menstrual natural de uma pessoa com ciclo interrompido por contraceptivo hormonal combinado.
A bióloga e neurocientista Ana Paula Lima explica que o lobo temporal medial é responsável por diversas funções, e que o hormônio sexual pode afetá-las. “A progesterona pode influenciar a plasticidade neural dessa região e atuar na memória, cognição, humor e aprendizado. Além disso, essa parte do cérebro influencia o eixo HPA (hipotálamo-pituitária-adrenal), que regula a resposta ao estresse e que está completamente relacionado a alterações comportamentais”.
Nos casos das pessoas que interrompem o ciclo menstrual com métodos contraceptivos hormonais, o estudo aponta que as alterações cíclicas provocadas pela progesterona são neutralizadas. Sobre o uso de hormônios sintéticos, Lima afirma que — resguardadas as variações de pessoa para pessoa — pode haver mudanças cerebrais.
“O que se pode afirmar é que há alterações na modulação de neurotransmissores que vão regular o sistema nervoso central de forma geral e por consequência toda a fisiologia humana. E isso vai influenciar o humor e alterar a estabilidade emocional em certa medida”.
Alterações ao longo do ciclo
A endocrinologista do Departamento de Endocrinologia Feminina e Andrologia da SBEM, Ruth Clapauch explica que estrogênio e progesterona oscilam ao longo da média de 28 dias de ciclo menstrual. Segundo ela, no primeiro dia da menstruação todos os hormônios estão baixos ou quase nulos. Conforme os dias vão passando, a quantidade de estrogênio aumenta até atingir seu pico no dia da ovulação.
A partir desse momento, o corpo lúteo começa a produzir progesterona, e o estrogênio vai baixando. A progesterona aumenta até por volta da metade da fase lútea, quando também começa a diminuir. “A função dessa progesterona é justamente preparar o útero para que, caso haja uma fecundação, aquele embrião seja bem recebido pelo útero”. Nos últimos dias antes da menstruação, ambos os hormônios ficam muito baixos, o que pode causar mais indisposição. “Se a gente quiser interpretar uma dosagem hormonal de uma mulher, a gente tem que saber o dia do ciclo em que ela está; no homem não tem essa necessidade.”
“Mais ou menos 75% das mulheres vão experimentar algum tipo de alteração na fase lútea, sejam elas alterações somáticas, como cansaço, dor nas pernas, dor nas mamas, insônia, dor de cabeça e alterações da flora vaginal”, explica a ginecologista Juliana Jordano, diretora da Rede Feminista de Ginecologia. Porém, a médica destaca que há mulheres mais ou menos sensíveis para as mudanças hormonais, mas que as causas disso ainda não foram descobertas pela ciência.
É nos últimos dias do ciclo menstrual em que pode ocorrer a Tensão Pré-Menstrual (TPM), que, como explica Jordano, não é mais chamada assim. Agora se reconhecem os desconfortos vividos antes da menstruação como Transtorno Disfórico Pré-Menstrual, que é dividido em casos leves, moderados e graves.
“Os casos leves são os em que se tem tanto sintomas físicos quanto psíquicos, mas que não ocorrem todos os meses e que não há prejuízo para a vida de uma maneira geral. Os casos graves e moderados são de 2% a 5%, e ocorrem quando há prejuízos, e realmente é uma doença a ser tratada do ponto de vista medicamentoso”, diferencia a ginecologista.
Clapauch explica também que até mesmo o desempenho mental das pessoas que têm ciclo menstrual natural pode ser mais baixo quando o estrogênio está baixo (o que ocorre na segunda fase do ciclo). “Quando a mulher está com estradiol [um tipo de estrogênio] baixo, como na pré-menopausa, ela fica com o que a gente chama de ‘Brain Fog’, que é uma névoa cerebral, ela fica meio confusa”.
Por outro lado, nos momentos em que os hormônios estão mais altos, as mulheres podem ficar ainda mais produtivas que os homens, afirma Jordano. Nesse sentido, sincronizar a vida com os momentos do ciclo menstrual pode melhorar não só a qualidade de vida das mulheres como seu desempenho em atividades.
“Eu sempre falo no consultório para as pacientes irem se programando para que, nessa semana pré menstrual, sempre que possível, não agendarem compromissos muito importantes. Que seja um momento de reflexão, porque é um período que traz um mergulho para as questões que a estão afligindo”, aconselha a ginecologista.
Esse é um movimento alinhado à discussão sobre a licença menstrual, política pública que concede o direito a dias de descanso remunerado do trabalho para mulheres que sofrem com sintomas relacionados ao ciclo menstrual. No Brasil, o Projeto de Lei 1.249/22 está em tramitação e prevê a possibilidade de mulheres terem até três dias de descanso por mês. Países como Espanha, Japão, Indonésia, Taiwan, Coreia do Sul e Zâmbia já possuem políticas públicas de licença menstrual.
Cabe lembrar que, durante a menstruação, é comum que mulheres sintam cólicas menstruais, e, uma vez que seus hormônios ainda estão baixos, como explicou Clapauch, os incômodos citados podem ainda estar presentes. Um estudo publicado no Journal of Pain Research em 2012 verificou que cerca de 84% das mulheres jovens sentem dores menstruais.
Pabla Perez San Martín escreveu o livro “Ginecosofia Natural”, em que mapeou técnicas de sabedoria popular sobre cuidados ginecológicos na América Latina. Ela afirma que mulheres são diferentes dos homens, e que têm necessidades diferentes. Nesse sentido, o estresse no estilo de vida pode ser ainda mais prejudicial para quem tem um ciclo menstrual. “É preciso estudar com essa visão biológica diferenciada, não somos todos iguais. Hoje em dia, por exemplo, o transporte causa muito estresse, o ar contaminado, a comida industrializada. Esse ritmo não é saudável para ninguém, mas especialmente para quem tem um ciclo menstrual, porque tudo tem relação com o sistema endócrino”, afirma ela.
Apesar disso, a saúde das mulheres ainda é pouco pesquisada na ciência, o que pode provocar uma demora ainda maior para alcançar mudanças. De acordo com uma pesquisa de 2022 publicada na Women’s Health Reports, uma lacuna de gênero vem sendo perpetuada nos estudos de medicina, em que as mulheres são menos pesquisadas que homens. Geralmente, dados para as pesquisas são coletados em homens e depois generalizados para as mulheres.
Diante disso, a ginecologista Juliana Jordano afirma que há consequências práticas na saúde das mulheres. “A gente ainda lida com muito pouca informação para prescrição de medicamentos para o tratamento de questões voltadas para o ciclo hormonal. A gente acaba usando muita analogia para isso”. San Martín comenta que essa lacuna na ciência provoca muitos atrasos, como a dificuldade que ainda existe para diagnóstico e tratamento da endometriose, doença que acomete uma em cada dez mulheres no Brasil.
Jordano afirma também que fatores sociais impactam a saúde das mulheres. “Não podemos colocar tudo na conta dos hormônios. A maioria das mulheres têm triplas jornadas de trabalho. Então tudo isso atribui para a modulação hormonal e cerebral”.
noticia por : UOL