sábado, 15, março , 2025 04:09

Suspense de 'Código Preto' consegue dosar lógica e emoção

Logo no começo de “Código Preto”, seis pessoas se reúnem para jantar em uma casa, como parte de uma confraternização do trabalho. Eles se dividem em três casais, em relacionamentos que vão do casamento de anos até uma relação de semanas.

A conversa da noite se dá de forma bastante informal, mas da plateia o público observa nervoso os desdobramentos. Afinal, todos os personagens são agentes da inteligência britânica e, pouco antes, descobrimos por um deles, o anfitrião, que um dos convidados traiu o país. Aquele encontro, tão leve, é um interrogatório disfarçado —mesmo a mulher do protagonista está na lista de suspeitos.

A situação daí em diante se desenrola mal, muito porque o anfitrião atiça os convidados de propósito para solucionar o caso. Ele tem fama por seu faro para a mentira e aquele grupo, em particular, é especialista em falsidade, então vale alguma dose de desconforto. Todos trabalham em missões do tal código preto, uma categoria tão secreta da espionagem que mesmo o envolvimento do agente vira informação privilegiada.

O trabalho então vira uma desculpa ótima para viver da mentira, como um deles bem aponta, mesmo que isso cause incômodo aos mais próximos. Ao filme, o que mais interessa é o clima de desconfiança emocional, mas a escala da mágoa surpreende. O ressentimento entre os convidados é tamanho que até o fim da noite a mão de um deles acaba esfaqueada —não porque ele traiu a pátria, veja bem, mas por causa de uma crise conjugal.

Esse olhar emocional dá fôlego à trama de espiões e traidores, que, em geral, alicerça o gênero. O público já está acostumado a histórias que curtem o lado humano da inteligência de Estado, mas não tanto a homens e mulheres frios que precisam lidar com suas emoções. Aqui, a conspiração engole aos poucos todos os agentes na paranoia dos dilemas pessoais, que se confundem com os seus interesses no trabalho.

No centro dessa ciranda estão os anfitriões do jantar, interpretados por Michael Fassbender e Cate Blanchett, que vivem situação particular de desconfiança. Enquanto dela nada sabemos, ele luta contra o tempo para encontrar o culpado do vazamento e, assim, descobrir a verdade sobre a sua mulher.

Do lado do público, resta saber se a preocupação do marido é por amor ou pelo cumprimento da missão. Ambos são muito calculistas até demais. Um ingresso de cinema encontrado no lixo, por exemplo, pode significar uma traição não só do parceiro, mas do Estado.

O diretor Steven Soderbergh conduz todo o suspense de maneira eficiente. À frente também da fotografia e da montagem, o cineasta constrói um mundo frio e asséptico para os personagens se digladiarem verbalmente. As cenas são tão precisas nos cortes e planos quanto os agentes nas negociações e nas informações que repassam.

Essa abordagem calculada é mais ou menos esperada do diretor, que construiu sua carreira com temas mirabolantes. O que é curioso, porque ele foi um dos principais nomes do cinema independente americano dos anos 1990 e sempre preferiu a fama de forasteiro à de protagonista em Hollywood.

Mas os melhores trabalhos de Soderbergh tem muito do artesanato do cinema americano, em especial na parte da operação. Os seus filmes posam de banal, mas são espertos na proposta e na execução. O seu máximo de exibicionismo são os experimentos estéticos, como os dois longas que fez com a câmera do celular, “Distúrbio” e “High Flying Bird”.

Essa contradição de Soderbergh, entre o operário esteta e o do contra nato, é o que dá vida a uma produção como “Código Preto”. O filme concentra forças na trama cabeçuda, que pede por uma direção sagaz para dar conta das tantas reviravoltas.

Nisso ajuda o roteiro de David Koepp, veterano de “Jurassic Park” e de “Missão: Impossível” que mantém a trama em movimento, evitando situações enfadonhas. O bom elenco também dá o seu melhor, tirando humor das atuações mais sérias —um mero teste do polígrafo, por exemplo, de repente ganha insinuações sensuais com a atriz Marisa Abela.

O mais importante, porém, é que Soderbergh segura a narrativa na ansiedade do protagonista diante da suspeita da mulher. A frieza da história ora ou outra ameaça essa tensão, arriscando tornar “Código Preto” em um mecanismo de causas e consequências.

Mas o filme se dá bem ao dar vazão a esse conflito entre lógica e emoção, que alimenta crises em qualquer relacionamento. É mais fácil uma faca cravada na mão que uma suspeita fincada na cabeça, e você nem precisa ser um espião para concluir isso.

noticia por : UOL

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