Cinco anos atrás, a Gafisa propôs uma mudança radical no planejamento de longo prazo e decidiu que abandonaria os empreendimentos voltados à classe média. O último ciclo de entregas de médio padrão deve durar até o início de 2026, depois, a companhia vai se concentrar exclusivamente no segmento de altíssimo luxo, o chamado superwealth, uma classe em franca expansão no Brasil do pós pandemia.
A guinada, afirma Sheyla Resende, CEO da companhia há dois anos, marca o início de uma nova era na construtora, agora mais compacta e capaz de entregar resultados mais sólidos ao mercado. No ano passado, a companhia encerrou o ano com um VGV (valor geral de vendas) de R$ 1,2 bilhão, alta de 120% na comparação com 2023.
A troca de portfólio se justifica nos números: um conjunto residencial com 395 unidades de médio padrão, entregue há um ano na zona sul de São Paulo, alcançou um VGV de R$ 171 milhões. No Rio de Janeiro, o Cyano Exclusive Residencies, instalado na Barra da Tijuca com 45 unidades de alto padrão, chegou a R$ 575 milhões em vendas.
Com a movimentação, a companhia conseguiu equacionar melhor sua operação e entregar mais resultado. O plano é lançar sempre dois projetos por ano nas praças de São Paulo e Rio de Janeiro, focando em oferecer o máximo de exclusividade possível ao cliente —cerca de 85% da carteira de vendas já está no alto padrão.
“Pelo fato de fazermos menos produtos, com maior valor, mas com menos unidades, eu tive a capacidade de reduzir meu backoffice. Só nos últimos dois anos a gente reduziu 40% do nosso custo fixo, conseguimos reduzir a equipe, reduzimos os escritórios. Temos hoje menos pessoas, mas conseguimos ainda assim manter o nosso faturamento anual”, afirma Resende.
No final do ano passado, a companhia lançou o edifício Allard Oscar Freire, que será levantado em um dos pontos mais concorridos da região dos Jardins, em São Paulo. O valor de um dos 19 apartamentos gira em torno de R$ 40 milhões.
São três tipos de plantas, sendo 17 unidades com 430 m², dois duplex com 770 m² e um triplex com 1298 m². O projeto é inteiro concebido por arquitetos de grife no mercado, como o francês Alexandre Allard, Arthur Casas, Benedito e Felipe Abbud, Marc Pottier e Antonio Bachour.
No Rio, o edifício Tom Delfim Moreira foi um projeto elaborado pelo escritório norte-americano de arquitetura Gensler, cuja a venda de uma das seis unidades chegou a R$ 38 milhões. O hall de entrada é decorado com obras de arte de artistas como Iole de Freitas, Vik Muniz, Sebastião Salgado, Ernesto Neto, entre outros.
Qual é o planejamento da Gafisa para este ano?
Temos uma previsão de fazer mais dois lançamentos no Rio de Janeiro. Hoje, as praças de atuação da Gafisa estão em São Paulo e Rio. Em São Paulo são localizações nos Jardins e Itaim; no Rio estamos falando especificamente da orla, podendo avançar um pouco para a Lagoa. Migramos 100% para esse mercado de luxo. Estamos ainda com projetos [de médio padrão] em fase de finalização e provavelmente ano que vem vamos ficar com uma safra totalmente voltada para esse mercado de luxo, seguindo o mesmo conceito do Allard Oscar Freire.
Como foi a decisão da troca de portfólio?
Nós estudamos muito o mercado com o objetivo de uma transformação da companhia. A gente sabe que esse tipo de público é menos suscetível a fatores externos. Independente do aumento de custo de material e do alto custo de obra, é um projeto que tem um VGV alto, a gente consegue controlar a margem.
Pelo fato de fazermos menos produtos, com maior valor, mas com menos unidades, eu tive a capacidade de reduzir meu backoffice. Só nos últimos dois anos a gente reduziu 40% do nosso custo fixo, conseguimos reduzir a equipe, reduzimos os escritórios. Temos hoje menos pessoas, mas conseguimos ainda assim manter o nosso faturamento anual, mantendo o nosso volume de lançamento, de entrega, mas com o time reduzido, porque a gente não precisa ter os mesmos backoffices que eu tinha para entregar dez empreendimentos com 400 unidades cada. Foi uma melhora na eficiência dentro da companhia.
Existem muitas diferenças nas demandas dos clientes de luxo do Rio de Janeiro e de São Paulo?
Cada localização tem seu estilo de vida, sua especificidade do bairro, e a gente adequa ao produto. Não precisamos ficar amarrados a um estilo. Determinamos nosso segmento nessa camada do luxo absoluto, mas adequando os projetos para cada localização. Quando a gente vai para a orla, vamos levar um produto que não pode agredir aquele ambiente. Ele tem que se comunicar com o bairro e com o estilo de vida ali no Rio de Janeiro. São Paulo já é diferente. O formato que trouxemos aqui para a Oscar Freire foi adaptado ao estilo de vida mais urbano dos Jardins.
É um desafio conseguir bons espaços e levantar projetos nessas regiões?
Acho que o maior desafio era fazer essa transição, que começou de dentro para fora, com todo um investimento de desenvolvimento, aculturamento, treinamento de quem estava na empresa, de absorver, de ir, conhecer, de estudar. E aí agora o segundo desafio sempre é esse, achar a melhor localização. Não é fácil. Mas eu acho que até o contexto da Gafisa hoje facilita, porque chega muita coisa para nós, já na forma como a gente gostaria de ver. Não que seja fácil, mas ainda assim, pelo fato de já estarmos posicionados, os terrenos acabam chegando até nós. Isso tem facilitado um pouco a nossa prospecção.
Qual foi o valor que vocês estabeleceram por unidade no Tom Delfim Moreira, no Rio?
Superamos os R$ 100 mil o m² no Rio de Janeiro. A gente fez aquele projeto sabendo do potencial, alcançamos essa marca e realmente foi um case para nós, o Tom acabou sendo um grande piloto para termos essa transformação, tanto dentro da companhia, como de resultado financeiro, forma de atender cliente, o que a gente quer entregar.
A alta dos juros afeta o mercado de alto padrão?
É um problema para todo mundo. No nosso segmento, em que precisamos ser mais criativos para viver, o problema é na aquisição dos terrenos. São terrenos únicos nessas localizações, sabemos o valor que eles possuem. Temos sido mais criativos na forma de adquirir. Não pode ser somente uma forma de dívida com a taxa que está, porque senão eu vou destruir a margem do projeto lá no final. Para poder superar essa alta de juros é preciso ter mais um modelo híbrido, de jacket de dívida [título de dívida que é emitido por uma empresa para financiar suas operações ou projetos] e não somente uma dívida pura.
Mudar o portfólio também foi uma forma de driblar o efeito causado pelos problemas políticos e econômicos do país?
É uma combinação de fatores, mas ter foco ajuda muito na gestão da empresa. A partir do momento que a gente determinou que ia para esse mercado, tomamos decisões importantes que melhoraram muito a eficiência operacional, o resultado financeiro, a forma de trabalhar. O foco te ajuda a ter objetivo de transformação para a companhia e você sabe onde precisa atacar. Fizemos muito isso pensando no treinamento das equipes, [retirando] ativos que não faziam mais parte dessa segmentação. Estamos falando de um projeto de R$ 900 milhões de VGV. Nos projetos que ainda estamos entregando temos mais unidades, mas é um VGV de R$ 200 milhões, de R$ 250 milhões.
Você se tornou CEO da Gafisa com 13 anos de carreira dentro da empresa. Como foi o processo para se tornar a primeira líder feminina da construtora em quase 70 anos de história?
Eu trabalhei na Gafisa a vida toda. Quando estava concluindo a faculdade de engenharia civil entrei no programa de treinamento da Gafisa e vim para São Paulo. Fiquei seis meses aqui conhecendo as áreas e depois fui para o Rio. Nesse momento a Gafisa estava espalhada em todos os estados do Brasil e fui para ser engenheira de obra, que era o meu objetivo. Fiz algumas obras no Rio, depois fui transferida para São Paulo. Fiz mais algumas obras aqui como gestora de obra. E depois fui atuar na área de qualidade, onde comecei a assumir a área de gestão. Foi nesse momento que comecei a participar da estratégia da companhia.
Em 2019, quando a gente teve aquele período de reestruturação da companhia, fui responsável por gerenciar o projeto com a Falconi e comecei a assumir outras áreas como RH, tecnologia, marketing e a área de gestão em si, que era responsável por coordenar toda a parte estratégica, de método. Eu estava muito envolvida na estratégia da companhia, desde o conselho até a diretoria e fui assumindo essa liderança, cada vez mais conforme a oportunidade foi surgindo.
Você projetava esse salto em um tempo relativamente curto?
Não. Desde o momento que entrei na Gafisa, nunca tive aquele objetivo de ‘quero alcançar tal cadeira’. Eu sempre tive o perfil do ‘vou fazer o meu melhor’. Sempre fui muito disciplinada e focada naquilo que eu estava fazendo, isso fez com que as coisas fossem acontecendo e os resultados fossem aparecendo. Nem sempre você está 100% preparado, mas é um aprendizado contínuo.
É comum casos de executivos que passam anos cavando esse espaço para se tornar CEO, mas a fila de sucessões nas empresas é grande. A Gafisa tem 70 anos, imagino que essa fila seja grande.
Foi natural, foi orgânico o que aconteceu. Estive muito envolvida nesse movimento de reestruturação e isso me deu bagagem suficiente para poder assumir um papel tão relevante de confiança na companhia. Mas eu acho que é um misto de itens que o conselho enxergou como uma pessoa que tem histórico internamente, que tem o DNA da empresa, que está pensando na companhia a longo prazo e que também é técnica, isso acelera muito a minha forma de enxergar o negócio na companhia.
E nesse meio tempo você engravidou. Como foi a experiência?
Tenho dois filhos, o João Lucas, de 3 anos, e a Sofia, de 1 ano e meio. Pra mim foi um processo muito natural, eu estava num momento de vida madura, pessoal e profissional. Eu sei que não é fácil para a maioria das mulheres conciliar a maternidade com o trabalho. Mas eu acho que a minha forma de me organizar pessoalmente e também no trabalho me ajudou muito. Aconteceu no melhor momento, eu estava migrando para uma posição de CEO quando fiquei grávida pela segunda vez. Não tive dificuldade na companhia por isso. Claro tem fatores que eu acho que ajudam muito. Eu tive uma gravidez muito tranquila, trabalhei até o último dia.
Sei que não é tão simples lá fora. Quando a gente olha para o mercado, poucas mulheres estão em cadeiras de liderança. Na Gafisa, temos praticamente 60% de homens e 40% de mulheres, num setor que é predominantemente masculino. Além de mim, tenho uma diretora de engenharia que é mulher, a diretora de controladoria financeira é mulher, e temos muitas gerentes no cargo de liderança.
RAIO-X | Sheyla Resende, 40
Formada em engenharia civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora, possui extensão em gestão orçamentária pela FGV. Na Gafisa desde 2010, foi trainee e atuou como engenheira e coordenadora de obras. De 2019 em diante, assumiu a gerência de gestão e qualidade, subiu para a vice-presidência de gestão e RH e se tornou CEO em fevereiro de 2023
noticia por : UOL